maio 26, 2014

Retrato de Fethullah Gülen: Um Reformista Turco-Islâmico Moderno

Bekim Agai, Ph.D.*

Fethullah Gülen, fundador de um movimento educacional mundial, considera moralidade e educação o motor para um Islã contemporâneo que seja compatível com laicismo.

Muitos estão em busca de “pensamento reformista” no mundo islâmico. A questão é: quais qualidades se espera de um reformista islâmico e o que, exatamente, constitui um “pensamento reformista islâmico”?
De um lado, há muçulmanos que referem a si mesmos como reformadores islâmicos (e.g. “euro-muçulmanos”), mas são poucos os muçulmanos que lhes dão atenção. Por outro lado, há aqueles que são descritos como tais, porém negam que estejam tentando reformar o Islã e dizem que estão apenas interpretando-o de uma maneira “islâmica correta”.

Este segundo grupo de pensadores inclui Fethullah Gülen, o mentor espiritual daquilo que é, provavelmente, o movimento turco-islâmico mais ativo desde o fim do século XX. Até o momento, pouquíssima atenção tem sido devotada a Gülen e seus seguidores em análises recentes do pensamento islâmico na Turquia.
As observações a seguir são baseadas principalmente na minha análise de ideias de Fethullah Gülen, sua disseminação e a maneira como seus seguidores estão organizados. Descreverei como o discurso de Fethullah Gülen sobre educação se reflete nas redes organizacionais, extremamente flexíveis, de seus seguidores.

Examinaremos tanto Fethullah Gülen quanto a questão mais ampla sobre se, com frequência, buscamos reformadores nos lugares errados dentro do espectro islâmico.

Fethullah Gülen como um “Muçulmano Modelo”

Fethullah Gülen é um clérigo aposentado, nascido em 1938 numa vila próxima a Erzurum no leste da Anatólia, que hoje vive nos EUA. Durante as décadas de 1970 e 1980 ele viajou como clérigo do Estado por toda Turquia e, naquela época, já acumulava grande número de seguidores.

Uma das abordagens chave das ideias que ele desenvolveu ao longo dos anos é a tentativa de formar um Islã mais moderno utilizando conhecimento adquirido de ciências naturais.

Com o crescimento da influência de tendências islâmicas no cenário político da Turquia nos anos 1990, os partidos moderados/conservadores tipificaram Gülen como um “muçulmano modelo” que oferecia uma síntese de valores islâmicos, com a separação entre Islã e política requerida pelo Kemalismo.

Em 1999, porém, ele se tornou vítima de uma campanha do Estado que o rotulou de ameaça islâmica, no entanto, essas acusações foram consideradas improcedentes. Fethullah Gülen vive, hoje, nos EUA.

Rede educacional de Gülen

Fethullah Gülen é fundador de um movimento educacional que, nos últimos 30 anos, criou uma rede de escolas na Turquia e no exterior, mas em cujas operações diárias ele não se envolve diretamente.

Motivado por princípios islâmicos, seus aderentes são comprometidos com uma educação moderna, “não-religiosa” e estão ativos na construção de unidades educacionais privadas, sem foco em assuntos religiosos, certificadas pelo Estado.

Inglês é, comumente, a língua principal de instrução. Essas escolas estão em todo o mundo e são resultado de uma visão de Islã que se desenvolveu a partir do contexto secular turco dentro de círculos islâmicos conservadores.

Essa atitude com relação à religião não é um componente do Islã Reformista Moderno proclamado pelo Estado Turco e ensinado em universidades de teologia; até certo ponto, ela se opõe ao entendimento oficial do Estado sobre Islã.

A concentração de atividades em um trabalho educacional “não-religioso” é ainda mais impressionante quando consideramos que é, precisamente, o Estado Turco laico que toma a política cultural externa como um trabalho religioso na Ásia Central e Alemanha, por exemplo, com a construção de mesquitas e apoio a instituições educacionais religiosas.

O entendimento tradicional sobre Islã

Fethullah Gülen é conhecido pelo público turco por suas atividades no campo inter-religioso; sua posição em reconciliar Islã e laicismo; sua condenação pública sobre violência em nome do Islã; e, acima de tudo, sobre sua posição quanto ao significado da educação no Islã.

Investigando seus prolíficos textos, contudo, percebe-se rapidamente que Fethullah Gülen não está interessado em defender sua própria e singular teologia ou mesmo uma nova direção revolucionária. Seu entendimento do Islã é orientado de acordo com a corrente conservadora e seus argumentos são tradicionais – ainda assim as atividades de seus seguidores impressionam a qualquer observador.
Desde a década de 1980, eles construíram cerca de 150 escolas privadas, 150 dershanes (centros de preparação pré-vestibular) e inúmeros albergues para estudantes.

O discurso de Fethullah Gülen sobre educação é disseminado, principalmente, por meio de uma rede de canais de comunicação iniciado nos anos 80, incluindo uma agência de notícias, uma estação de televisão, um jornal diário e diversas revistas e editoras.

Todos estes meios de comunicação divulgam atividades dos seguidores de Gülen. As instituições estabelecidas pelo grupo são, formalmente, independentes. No entanto, elas se unem em uma rede educacional por meio de contatos próximos mantidos por seus diretores.

Conceitos educacionais com sucesso mundial

Após a queda da “Cortina de Ferro”, Fethullah Gülen encorajou seus seguidores a espalharem suas ideias além das fronteiras turcas. Ele contava com o apoio de empresários que expressavam interesse em apoiar suas ideias no exterior.

Atenção especial foi dada a países da antiga União Soviética e Balcãs. Aderentes de Gülen também iniciaram instituições educacionais não afiliadas ao Ministério da Educação da Turquia na China, Bósnia-Herzegovina, Dinamarca, Alemanha, Grã-Bretanha, Iacútia (Federação Russa), Camboja, Holanda, França, Filipinas, Coréia do Sul, Tanzânia, Chechênia (Federação Russa) e Tailândia.

Uma omissão óbvia são os países árabes: o envolvimento de turcos nesses países em uma área tão central como o sistema educacional é, aparentemente, inimaginável. Na Alemanha, o Movimento é muito ativo, com centros de estudos em quase todas as cidades grandes e escolas privadas planejadas. Apesar de o grupo não ter sede oficial na Alemanha, isto não significa que suas atividades não sejam coordenadas em rede.
Essa foi a primeira vez que um grupo islâmico exerceu esse tipo de influência em um sistema educacional laico na Turquia moderna, e a primeira vez que um conceito educacional turco é exportado de forma bem-sucedida.

Não surpreende que as opiniões são tão divididas, na Turquia, com relação a Gülen e seus seguidores – afinal, eles conseguiram romper barreiras entre seções “islâmicas” e “laicas” da sociedade que se mantiveram fortemente entrincheiradas por muito tempo.

Ainda que as instituições educacionais partam de um conceito islâmico, elas são reconhecidas pelo Estado Turco laico. São incorporadas no – quase sempre secular – Sistema Educacional Nacional em vários países e a linguagem de instrução é, comumente, o inglês.

Na Turquia, o currículo geral para escolas da rede prescreve uma sessão de ensino religioso por semana, enquanto em outros países as escolas não oferecem qualquer tipo de ensino religioso. Estas escolas (com exceção de algumas escolas Imam Hatip) dificilmente poderiam ser consideradas islâmicas em sentido estrito.

Conceitos Islâmicos de Gülen – o “Discurso de Gülen”

Este compromisso com educação, a própria atitude de Gülen com relação ao Islã e política, assim como a posição da mídia em sua rede manifestam novos impulsos originários do ambiente social islâmico da Turquia.
Vemos muitos efeitos positivos surgindo do conjunto de valores de Gülen e das atividades de seus seguidores. Porém, isso o torna um reformador? Para responder esta questão, devemos primeiro olhar com atenção o mundo de ideias difundidas por Fethullah Gülen.

Uma distinção deve ser feita entre teologia reformista e pensamento islâmico inovador. O “discurso de Gülen” consiste de inúmeros elementos que só podem ser tocados aqui brevemente. Uma das características de seu discurso é a ambiguidade de suas palavras, a forma com que suas ideias são “agrupadas” de maneiras diferentes dependendo da audiência.

Assim, sua conquista não se encontra na reinterpretação de textos religiosos, mas na forma como ele recombina vários elementos de conhecimento comum em novas teses. Os princípios básicos de seu discurso são:

Preservação do Islã na era moderna

1. Este princípio é baseado nas ideias do ativista turco Said Nursi (1960). Sua visão do Islã era composta de várias suposições básicas:

• O Estado moderno laico é um oponente poderoso. Confronto direto só prejudica o próprio interesse islâmico, já que o Estado, inevitavelmente, responderá com repressão. Fica claro para Nursi, que Deus julga cada indivíduo separadamente com relação a como este leva sua vida. Um movimento islâmico reformador, desta forma, precisaria se concentrar em guiar indivíduos ao caminho certo; a ordem do Estado deve ser aceita como estrutura em assuntos práticos para que a pessoa possa se dedicar a tarefas mais importantes.

• O homem vive na era da ciência e tecnologia, para a qual não há alternativa. Ou o indivíduo ajuda a moldar sua era de maneira religiosa ou transfere o poder de exercer qualquer influência. Fethullah Gülen elabora sobre este ponto com a frase: “O insatisfeito nunca moldou a história”. Ele, desta forma, rejeita uma abordagem revolucionária e contrapõe a ideia de afastamento da sociedade laica com engajamento ativo (como uma contribuição para reforma social).

• Nursi e Gülen veem a ciência moderna como caminho para tentar entender a Deus, racionalmente, com o estudo de Sua criação. Assim, esta é a única maneira de preservar a religião na era moderna. Esse conceito dota o estudo racional do mundo, cujos fundamentos são providos pela escola secular, com um significado religioso. Ciência, similarmente, forma a base para prosperidade econômica, harmonia social e independência nacional: todos objetivos necessários para sobrevivência tanto do Estado moderno quando do Islã moderno.

• Debates teológicos não têm espaço em uma era em que a própria existência da religião está em risco. Teologia deveria, assim, enfatizar áreas em que há consenso e minimizar assuntos mais detalhados.

Nacionalismo turco e Islã

2. Um fator crucial da ascendência de Fethullah Gülen na Turquia é a síntese de nacionalismo turco e Islã que ele defende. Isso tem sido adotado por seus aderentes em outros países, com o princípio de nacionalismo expandido para se adaptar a condições locais.

Gülen e seus seguidores veem que um mundo de estado-nações é tão inevitável quanto globalização. Eles não acreditam mais (apesar disso ter sido diferente, para Gülen, nos anos 80) que sua identidade islâmica só pode ser preservada se eles se desligarem do mundo lá fora.

Gülen é confiante de que seus objetivos podem ser concretizados e, portanto, defende fronteiras abertas para recuperar validade para o Islã. Já que não há maneira de parar a globalização, ela deve ser usada como oportunidade.

Na opinião dele, teologia não é a chave para modelar o mundo moderno, mas as instituições educacionais laicas o são, juntamente com o uso direcionado da mídia (moderna), participação e influência no mundo dos negócios.

Gülen vê as obrigações que o Islã impõe a seus seguidores como sendo muito bem definidas e, neste aspecto, ele está dentro do consenso conservador. No entanto, muçulmanos devem continuar a buscar conhecimento para se libertarem de sua dependência material e ideológica do Ocidente (e de sua orientação materialista e positivista). Essa dependência é foco do criticismo de Fethullah Gülen tanto quanto o Islã Político.

Independência nacional e cultural só poderá ser preservada se muçulmanos conseguirem talhar o mundo moderno de acordo com suas crenças em vez de rejeitarem a modernidade como um todo.

Moralidade e educação antes de política

3. De acordo com estas opiniões, os sermões de Fethullah Gülen não são teologicamente inovadores. Ele prega máximas comportamentais islâmicas clássicas: cihad (jihad = “esforço” no caminho de Deus); irşad ("liderança"); tebliğ ("disseminação" do Islã) e, acima de tudo, hizmet (“serviço” pacífico em nome de Deus). Ele os consubstancia usando padrões e argumentos bem estabelecidos teologicamente.

Fica patente o quão convencional é o raciocínio de Gülen quando o assunto é persuadir ouvintes sobre o que é certo de acordo com o Islã. Ao mesmo tempo, contudo, ele propõe maneiras completamente novas de implementação dessas convicções. O professor, nesse caso, se torna um profeta, que cumpre os princípios islâmicos mencionados acima ao transmitir conhecimento.

O ponto chave para Gülen é que os princípios islâmicos são, em si, imutáveis, mas devem receber uma forma concreta em cada era. Em dado momento, um curso de Alcorão pode ter sido a melhor maneira de investir as doações islâmicas, mas, em uma época em que “há uma mesquita em cada esquina”, outras atividades islâmicas devem ser priorizadas, de acordo com Gülen e seus seguidores.

Ele tem êxito em obter apoio, em círculos islâmicos conservadores, para novos campos islâmicos de ação usando terminologia tradicional islâmica e definindo seus termos de forma absolutamente convencional, mas, ao mesmo tempo, enriquecendo-os com implicações extremamente inovadoras para os dias de hoje.

A estratégia de Gülen para evitar objeções ou contradições entre a lei islâmica e laica ou conceitos islâmicos do Estado não envolve recorrer a eruditos reformistas turcos, iranianos ou árabes, que reinterpretam a história e o Alcorão.

Em vez disso, ele simplesmente argumenta que questões de moralidade e educação são mais importantes para o Islã atual do que problemas políticos, e que os muçulmanos de hoje são confrontados com problemas totalmente diferentes da questão sobre se a Sharia deve ou não ser introduzida.

4. Gülen desenvolveu uma ética de boas ações que tanto abre novos campos da sociedade para atividades islâmicas quanto eleva o trabalho e eficiência a axiomas a serem vividos. Neste contexto, trabalho dedicado à conquista de um objetivo islâmico (mesmo que apenas uma parte dos rendimentos seja doada à causa) se torna um ato a serviço de Deus. Trabalho educacional e apoio à educação são dotados do mais alto valor islâmico.

5. A visão de como melhor implementar axiomas islâmicos organizacionalmente é guiada pela tentativa de evitar perdas por atrito e ineficiência a todo custo.

Ineficiência, assim, é repreensível no Islã. Além disso, estratégias são prescritas sobre como o fiel pode melhor cumprir suas obrigações para com Deus. Estas estratégias circulam em torno da implementação eficiente de empreendimentos islâmicos, projetos concretos e devoção individual.

Gülen, antes de mais nada, difunde as formas organizacionais aderidas por seus admiradores (cemaat - comunidade) como ferramentas que podem nos ajudar a unir salvação individual à preocupações e objetivos do grupo e de toda sociedade.

Assim, ele “islamiza” formas organizacionais de seus seguidores e suas estratégias. Ambos devem ser flexíveis para que tantas pessoas quanto possível possam contribuir para realização de objetivos da cemaat. Para Gülen, a sociedade só pode ser mudada por meio de seus indivíduos. As cemaat se dedicam a educar esta “nova geração”.

Pragmatismo “islamizado”

6. Fethullah Gülen e seus seguidores religiosos seguem uma interpretação do Islã muito clássica. Ao lidar com outros, no entanto, é mais importante transmitir, pelo menos, uma parte de seus valores (mesmo que devam deixar sua motivação islâmica de fora) em vez de se mostrarem assertivos demais ou islâmicos demais e, com isso, perder qualquer influência além dos círculos islâmicos.

Esta combinação de argumentos convencionais e conservadores levados na novos métodos de implementação que os permite alcançar novos grupos-alvo é decisiva para o sucesso das ideias de Gülen.
Durante minha pesquisa de campo, alguém próximo à cemaat disse o seguinte: Do lugar de onde ele veio, a maioria das pessoas (com seu sistema de valores islâmicos tradicionais), há apenas uma geração, recusariam enviar suas filhas a escolas de ensino médio.

Porém, hoje em dia, elas até deixam suas filhas estudarem em universidades, convencidas das conexões próximas entre Islã e educação. Isto só foi possível por meio do uso de linhas tradicionais de argumentação amplamente aceitas.

As pessoas podem, prontamente, se identificar com o escopo islâmico de argumentação de Gülen. Ele teve êxito fazer pessoas se interessarem por seus objetivos, principalmente aquelas que não puderam ser convencidas pelo Islã Reformista, disseminado pelo Estado, a mudarem suas atitudes, mas que estavam prontas a pôr questões diárias sobre como criar seus filhos e como praticar sua religião à frente de assuntos mais amplos sobre Islã Político.

Isso lança nova luz sobre a questão do que compõe o Islã reformista. É o Islã que precisa ser reformado o precisamos mudar as pessoas? Fethullah Gülen mostra que, quando analisamos processos inovadores no mundo islâmico, não podemos negligenciar esta abordagem, mesmo que suas ideias não possam ser chamadas de reforma teológica, em sentido estrito.

Publicado em Qantara.de, 10 de janeiro de 2005.
Traduzido do Alemão por Jennifer Taylor-Gaida
Traduzido do Inglês por Camila Oliveira Vatandaş


*Nascido em 1974, Agai estudou Ciência Histórica, Psicologia e Estudos Islâmicos em Bonn e Cairo. Desde 2003, ele trabalha como professor assistente no Departamento de Estudos Orientais na Universidade de Bonn.
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