Sofia Lorena
Muhammed Çetin é doutorado em Sociologia mas tem dedicado grande parte do seu tempo à promoção do diálogo inter-religioso e intercultural, centrais no movimento Gülen, que integra.
Seguidor de Fethullah Gülen, Muhammed Çetin é autor de várias obras sobre o movimento Gülen, também chamado Hizmet (Serviço). Em 2011, aceitou ser candidato a deputado nas listas do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) e precisou de ser eleito para concluir que o primeiro-ministro é um “egoísta e um autoritário” que só “se move pela ambição pessoal”. Em ruptura com Recep Tayyip Erdogan, o Hizmet é um movimento com milhões de seguidores e uma rede de escolas e universidades em 160 países, às quais junta um império mediático, uma federação empresarial e associações empresariais. Os críticos falam em “sociedade secreta” e os nacionalistas turcos chegaram a acusar Gülen (que vive nos Estados Unidos desde 1998) de ser “agente da CIA”.
Os gulenistas defendem a modernização do islão e a separação entre política e religião. Gülen começou com campos de férias e a acabou por criar uma poderosa rede global. “A educação é o direito mais básico dado por Deus e garantido pela Constituição”, diz Çetin, que esteve em Portugal a convite da Associação de Amizade Luso-Turca, três meses depois de ter abandonado a bancada do AKP na sequência de um escândalo de corrupção que envolve o partido e pode chegar ao primeiro-ministro. Mantendo-se como deputado independente, diz que fará o que puder para mudar a Turquia através “do diálogo pacífico e do respeito mútuo”.
Quando é que descobriu Gülen?
Foi por volta de 1978 ouvi falar nele, mas só em 1980 é que me envolvi. Era o tempo do terrorismo e dos golpes de Estado na Turquia e eu era um activista político. As pessoas estavam a matar-se umas às outras e havia bombas a explodir, eu pensava que a violência não podia ser a solução para a Turquia. Voltei a ouvir uma série de conferências de Gülen e ele era completamente contra a violência. Dizia que se queríamos contribuir para o nosso país teríamos de o fazer através da educação, do diálogo, do entendimento e do respeito mútuos, e eu fiquei atónito. Pensei que era exactamente o que queria fazer. A educação fazia sentido e foi assim que me envolvi completamente com o movimento.
Mas trabalhou muito fora da Turquia.
Sim, estive cinco anos na Turquia mas completei a minha educação no Reino Unido e depois fui ensinar para os Estados Unidos. E foi quando lá estava que o primeiro-ministro me telefonou a perguntar se eu não queria candidatar-me a deputado por Istambul, mesmo não sendo eu membro do partido. Fui eleito, estive no Comité da NATO e fui vice-presidente do Comité dos Assuntos Externos. Pensámos que eles podiam beneficiar da nossa experiência. Na altura, a Turquia não estava com muito boas relações com os EUA e nós somos muito activos no diálogo intercultural e inter-religioso e na academia, pensámos que podíamos contribuir para diminuir a tensão.
Houve uma aliança entre o AKP e Gülen, mas isso foi algo discutido formalmente, planeado?
Não, nunca houve uma discussão formal sobre uma aliança, nós decidimos apoiar Erdogan e o seu partido porque ele disse que haveria uma nova Constituição, uma Constituição civil, disse que ia ser rápido no processo de adesão à União Europeia; que não haveria controlo sobre a sociedade civil; que as liberdades civis seriam alargadas; que não haveria mais nenhum conflito armado com os curdos… Era tudo o que nós queríamos e já defendíamos. A paz com os curdos é muito importante, faz-se através da educação e da melhoria das condições de vida. Nós acreditávamos em tudo o que ele dizia defender. Mas depois ele abandonou tudo isso, voltou atrás, envolveu-se na corrupção e lançou-se numa retórica dura e imparável e nós retirámos-lhe o apoio.
É verdade que o movimento se infiltrou nas forças polícias e na justiça, colocando membros em cargos importantes de várias áreas da função pública?
Eu chamo a atenção para uma série de acontecimentos e a irracionalidade da acusação de que nós estamos por trás das denúncias de corrupção ficará evidente. Primeiro, disse que o embaixador norte-americano estava por trás de tudo; depois, disse que os autores da conspiração eram a Alemanha, Angela Merkel e a Lufthansa, porque a Turquia ia construir o terceiro maior aeroporto da Europa e eles não queriam isso. Quando os alemães responderam com dureza, ele acusou lobbys – interrogado sobre a natureza desses lobbys, respondeu ‘Israel e a diáspora judaica’. Quando todas estas pessoas rejeitaram estas acusações ridículas, ele disse que os EUA e a Europa eram os autores das escutas [a membros do partido e ao próprio Erdogan] e que as tinham passado ao movimento Gülen para que nós as divulgássemos às suas ordens…
Mas se num determinado momento Erdogan e o movimento estiveram juntos é natural que várias pessoas tenham acedido a cargos importantes.
Nessa altura, 80% do AKP apoiava o nosso movimento, os filhos deles iam às nossas escolas, os filhos dos deputados também, acediam às bolsas do movimento. As pessoas estavam juntas. Quando tudo se tornou terrível, com este discurso de polarização, percebemos que a Turquia estava a perder e tivemos que desistir.
Só se demitiu depois do início do escândalo de corrupção, em Dezembro.
Sim, demiti-me em Fevereiro, depois de vários ministros e deputados.
Como é que viu o movimento de protesto do Parque Gezi e a repressão e violência com que o Governo reagiu, no Verão passado?
Esse movimento começou com inocência. Não há muitos espaços verdes para as pessoas descansarem no centro de Istambul. E ele queria derrubar aquelas árvores para construir mais um centro comercial. Havia lá umas 20 árvores e eles cortaram oito ou nove. Os estudantes disseram que não precisavam de mais centros comerciais, que queriam aquelas árvores. E uma noite ele veio com buldózeres e polícias, queimou as tendas e atacou as pessoas. Muitos outros acharem que era demasiado e as pessoas começaram a manifestar-se. Alguns grupos radicais aproveitaram e tudo se tornou incontrolável. E aí ele [Erdogan] entrou em pânico, temendo uma Tahrir, e respondeu com ainda mais violência.
Não lhe ocorreu demitir-se em protesto contra a violência?
Durante muito tempo pensámos que podíamos convencê-los através do diálogo. Todos pensávamos que ele [Erdogan] não tinha boas pessoas a assessorá-lo, que não tinha lido bem a situação. Nós não estávamos ali como membros do Movimento Gülen, tentámos contribuir politicamente. Quando ele começou a atacar Gülen e percebemos que o seu interesse não era a Turquia mas a corrupção em interesse próprio, concluímos que não podíamos continuar. Não foi por ele atacar Gülen, foi por causa da corrupção. Não podíamos fazer parte daquilo.
Qual foi o ponto de viragem na ruptura?
Ele usa palavras como conspirações, guerra, caça às bruxas, assassinos… Contra nós e contra os manifestantes. Espiões, terroristas, agentes de Estados estrangeiros. Não é a linguagem de um primeiro-ministro, são as palavras de alguém que é só primeiro-ministro dos 40% que votaram nele, não dos 100% de turcos.
Mas o que é que tornou a ruptura inevitável?
Começámos a pensar em demitir-nos muito antes. Gülen insistia, dizia que podíamos dar alguma contribuição. Mas tornou-se insuportável. Pessoas inocentes são chamadas de traidores, um crime terrível.
E a decisão de Erdogan encerrar as “escolas preparatórias” (onde os estudantes estudam para o concurso de entrada na universidade, uma fonte de financiamento e recrutamento importante para Gülen), em Novembro?
Não teve nada a ver com isso, começou antes. Começou com Gezi e com a UE, quando ele disse que queria integrar Organização de Cooperação de Xangai, quando desistiu da Constituição. Ainda não havia nada a acontecer com as escolas. Mas a educação é o direito mais básico dado por Deus e pela Constituição. No Sudeste da Turquia, só quem vai às nossas escolas ou faz os cursos de preparação chega às universidades. Se fechamos estas escolas deixamos estes jovens entregues aos terroristas e aos radicais. Atacar as nossas escolas só mostra que ele não é sincero quando diz que quer servir os turcos, mostra que só se importa com a sua ambição pessoal. Foi o último golpe.
Fala muito da UE e da desistência do AKP. Mas também não houve erros de Bruxelas que afastaram os turcos e acabaram por tirar aos europeus poder de influência sobre Ancara?
Se tivéssemos cumprido os critérios de Copenhaga teríamos passado a uma segunda fase do processo. Mas com os argumentos da segurança nacional não os cumprimos, e quando os gregos e os cipriotas assumiram a presidência chegámos a parar com as negociações. E ele é primeiro-ministro, quantas vezes foi ao Irão? Por que é que não vai à Europa? Queremos ser membros da UE e ele não se mete num avião?
Mas o AKP nunca esteve interessado na UE ou acabou por desistir?
Penso que a um dado momento aceitaram o processo para se verem livres dos generais e depois perceberam que já não precisavam deles. A partir daí tinham mais a perder do que a ganhar, a UE ia estar em cima deles, a questionar-lhes as decisões. É verdade que as atitudes pessoais do Presidente Sarkozy contra a Turquia não ajudaram. A Alemanha de Merkel também não se portou bem, mostrou muitas suspeitas em relação à Turquia. Houve erros, mas isso já passou, a Europa não quer perder a Turquia.
Consegue ver áreas onde a Turquia melhorou desde a chegada do AKP ao poder?
Infelizmente, avançámos mas foi como uma pedra lançada ao ar. Subimos depressa e a queda foi ainda mais rápida. Estamos a perder tudo o que tínhamos conseguido, as reformas, os referendos… 68% das pessoas votaram para que o sistema judicial fosse independente, eles levaram essa emenda a votos, escreveram-na, nós apoiámo-la. Os juízes e os procuradores devem ser independentes. E agora o Governo diz que não, que será o próprio Governo a fazê-lo. Se o ministro decide, um caso é julgado, se não, arquiva-se. Mas há juízes corajosos, que estão a tentar enfrentar o Governo. Veremos, às vezes basta um juiz. O que não queremos é violência, queremos que o país volte ao caminho certo por meios políticos.
Mas o país está realmente polarizado.
Foi o primeiro-ministro que fez isso.
Sim, mas a consequência é um país dividido, como é que se trava esta polarização?
A construção é difícil, implica paciência, sofrimento tempo, recursos; a destruição é fácil. O homem [Erdogan], com a sua retórica áspera, está a agir como governo, partido, Estado. Não o queremos. Queremos que 60% da Turquia seja ouvida.
E o que vai acontecer com as presidenciais, em Agosto?
Algumas pessoas dizem que o melhor é deixá-lo ser Presidente, um cargo cerimonial. Outros têm medo disso porque ele [Erdogan] queria mudar a Constituição para retirar ao primeiro-ministro grande parte do poder e transferi-lo para a presidência. A nossa Constituição actual não o permite mas ele diz que o vai fazer, que o consegue.
Isso ainda é possível?
Não sei. O que sei que é a que a Turquia merece melhor. Os turcos merecem um sistema melhor, um Presidente melhor, um governo melhor. Este é pessoal, é egoísta, é autoritário.
Mas como é que isso vai acontecer, como é que se chega lá partindo das condições actuais?
Nós, os 60% dos turcos que não estão representados e o Movimento Gülen, vamos tranquilamente tentar convencer as pessoas que nada disto é bom para o nosso país. Ele pode ser duro, autoritário, nós vamos ser pacíficos.
E podem fazer isso sem um líder político forte?
Dizem que ele tem carisma, mas ele faz mal à Turquia, isso não nos interessa.
E não precisam de um líder?
Não, precisamos de vontade colectiva, de discussão e decisões colectivas.
Isso pode ter muita força, mas é preciso alguém que se candidate a eleições.
Não sei. Não temos ninguém assim, eu não quero ser essa pessoa. O movimento não tem essa intenção. Mas há pessoas na retaguarda que estão dispostas a assumir esse papel. Se essas pessoas forem honestas, se partilharem os nossos princípios e quiserem trabalhar pela educação, pelo desenvolvimento, pelas liberdades e direitos, por uma nova Constituição, pelo acesso à União Europeia, sem tensões com outros países, as pessoas vão apoiar esses líderes.
Publicado em Publico, 19 Maio 2014,