novembro 06, 2019

O movimento Hizmet de Fethullah Gülen e o bem comum - uma perspectiva do Reino Unido

Rev. Dr. Ian G. Williams*

O movimento Hizmet (serviço, em turco) associado ao professor turco Fethullah Gülen [nascido em 1941] faz parte do emergente "Islã Europeu", que tem sua própria diversidade na expressão da identidade turco-muçulmana. O movimento atua globalmente em educação, mídia, diálogo inter-religioso, finanças e trabalho de ajuda humanitária. Na Grã-Bretanha, o Hizmet tem sido particularmente ativo no diálogo educacional e inter-religioso e contribuiu significativamente para o bem comum nos últimos vinte anos. Hizmet é uma expressão viva da afirmação de Mevlana Rumi de que a fé no Deus Único está longe de ser "uma Caravana do Desespero" (Citlak & Bingul 2004, 8).

Este artigo está sendo escrito em um momento de estresse nacional no Reino Unido e na Turquia. Neste último, após a tentativa de golpe de julho de 2016, os seguidores do Hizmet enfrentaram uma pressão extraordinária, a maioria ilegal, do governo do AKP. Sem fornecer nenhuma evidência, o governo reivindicou que o Hizmet - um movimento até então benigno, pró-social, pró-democrático e apolítico - planejou e realizou a tentativa de golpe. Milhares de cidadãos suspeitos de associação ao movimento Hizmet foram presos, exilados ou demitidos de suas profissões pelo governo do AKP. Uma análise crítica dessa hostilidade é essencial.

No Reino Unido, o mesmo período foi marcado por um referendo divisivo sobre a participação do país na União Europeia, quatro ataques terroristas em Manchester e Londres e um incêndio residencial em Londres, que matou mais de 80 vidas, incluindo as de muitos imigrantes.

Ao olhar para o Reino Unido, é preciso examinar o papel principal que comunidades de fé como o Hizmet tiveram na união de sociedades divididas pelo racismo, islamofobia, desigualdades econômicas e enfraquecimento dos serviços públicos. Líderes nacionais e locais cristãos, muçulmanos e judeus se uniram para estabelecer uma plataforma comum de acordo e respeito mútuo. O Hizmet, com seus centros educacionais e de diálogo inter-religioso nas principais cidades inglesas, como Londres, Birmingham e Manchester, ofereceu espaços e oportunidades de engajamento mútuo, bem como entendimentos baseados no Alcorão sobre a dinâmica de culturas nacionais religiosa e socialmente plurais.

O Islã, uma tradição rica e forte que prospera em muitas sociedades diversas, é uma fé viva e permitiu que gerações de muçulmanos abordassem desenvolvimentos sociais, justiça e questões corporativas e individuais de identidade e ética. Com base no Alcorão, Hadith, Sunnah e fiqh, novos movimentos sociais islâmicos formaram constantemente novos espaços públicos nos quais novas identidades e estilos de vida poderiam surgir, não por menos no Reino Unido.

Algumas das melhores expressões do Islã ocorreram sob as circunstâncias religio-sociais mais pluralistas, onde o discurso intelectual, as realizações educacionais e a harmonia social floresceram. Entre os pensadores islâmicos contemporâneos que professam se interessar em interpretar fontes históricas e praticar sua fé de maneira "islamicamente correta", Fethullah Gülen é o pai espiritual do que provavelmente é o movimento turco-islâmico mais ativo do final do século XX e início do século XXI .

Ao considerar o Hizmet, logo se percebe que Fethullah Gülen não é um inovador com uma teologia nova e única nem um revolucionário. Sua compreensão do Islã é orientada dentro do ramo principal conservador, e seus argumentos estão enraizados nas fontes tradicionais do Islã. Eles estão em uma linhagem representada por al-Ghazali, Mevlana Jalal ud-Din Rumi, Bediuzzaman Said Nursi e em companhia de Muhammad Asad e Muhammad Naquib Syed Al-Attas e Seyyed Hossein Nasr.

Esse movimento - um dentre muitos em um espectro que varia de grupos cívicos pró-sociais a facções agressivas - é distinto ao enfatizar instituições educacionais de alta qualidade, tanto na Turquia quanto internacionalmente. As escolas foram fundadas e mantidas por cidadãos turcos em países em desenvolvimento, bem como em países poderosos e economicamente desenvolvidos, como os EUA e o Reino Unido. Os membros do Hizmet também organizaram muitas conferências acadêmicas nos últimos 20 anos, atraindo painéis internacionais de acadêmicos e pesquisadores para explorar questões de exploração e cooperação humanas.

Enquanto os membros do Hizmet têm organizado essas escolas e conferências, o atual governo do AKP adotou uma versão agressiva do "Islamismo Político", que não admite as expressões de um Islã benigno que contraste com ele, e que afirma seu estilo autocrático demitindo acadêmicos, professores, juízes, servidores públicos, e militares, entre outros, em um esforço para consolidar seu poder sobre o estado turco. Isso levou a um "estado em exílio" para muitos suspeitos de associação com a abordagem do Hizmet.

Quais mecanismos, no entanto, permitiram que esses elementos extremistas emergissem e tomassem um poder como esse? Vale a pena examinar, para que possamos entender completamente o valor que o Hizmet traz para o mundo.

A defensividade é patogênica

No mundo complexo e globalizado de hoje, a migração e o interculturalismo se tornaram a norma. Em muitos países, não existe religião oficial, compartilhada e “pública”.

Em uma análise sociológica do porquê altas taxas de religião rígida em países desenvolvidos como o Reino Unido e outros estados europeus, Steve Bruce formulou o conceito de "transição e defesa cultural", explicando como a defensividade pode reforçar tipos extremos de religiosidade, incluindo aqueles que advogam violência (Bruce 1996, p. 165, 197.) Uma questão significativa aqui é a falta de um centro ocidental do Islã, o que torna necessário que os muçulmanos estudem no exterior. Cesari e Ramadan afirmam fortemente que um Islã ocidental independente deve emergir para resolver problemas associados à radicalização (Cesari 2004 e Ramadan 2004) O movimento Hizmet está em uma posição privilegiada para oferecer esse modelo de islamismo.

A maioria central de uma religião freqüentemente usou da pressão social para controlar extremistas. Se a massa central de crentes diminui em número, o crescimento de facções literalistas e extremistas provavelmente continuará sem controle.

Literalismo sectário

Historicamente, sempre houve uma disputa entre tradições monoteístas e outras tradições de fé, assim como essa disputa existiu no meio delas. Enquanto as religiões abraâmicas afirmam o monoteísmo, resistem ao desvio e se opõem às divindades construídas, seus valores centrais enfatizam a abertura à diversidade. O literalismo textual, no entanto, tornou o novo monoteísmo politicamente sectário, cismático e agressivo, enquanto as leis sociais e morais foram consideradas inferiores por essa nova ênfase. Esse desenvolvimento anunciou um novo tipo de ordem política inevitavelmente hostil a todos os outros ideais cívicos (Fenn 2009, 135). Essa irracionalidade teve e tem consequências graves e mortais.

Tipicamente, literalistas acríticos pretendem purificar “falsos crentes” do meio deles, ou separar-se deles. É por isso que o literalismo pode levar à violência e geralmente leva a cismas (Harris 2004, 409). Ser literalista é destruir a maioria da profundidade e emoção de qualquer religião escrita. A única vantagem da atitude acrítica do literalista em relação às escrituras é que ela atende à ordem simplista de desejo mental. Essa é a estratégia e a mentalidade da liderança do AKP e sua perseguição a pessoas devotas influenciadas pelo Hizmet e Fethullah Gülen.

Desdenhando o pluralismo

Os extremistas impõem códigos morais rígidos de acordo com suas crenças e, às vezes, como durante os períodos medievais cristãos, suprimem violentamente os dissidentes. Eles desprezam o pluralismo como anormal: cuius regio, eius religio.

Durante esses tempos, os grupos religiosos minoritários não têm escolha a não ser argumentar pela pluralidade religiosa como uma questão de auto-sobrevivência. Mas, mesmo em tempos menos estressantes, é fundamental valorizar o pluralismo, que eleva as vozes minoritárias e garante uma sociedade diversificada, onde diferentes vozes e crenças estão no mesmo pé de igualdade.

Quando uma ideologia política singular, como a ideologia islâmica do AKP, se entrincheira e invade as arenas da educação e da política públicas, surge uma possibilidade perigosa: seus líderes, confortáveis no poder, não verão mais a necessidade do pluralismo, que é a semente de uma sociedade normal e saudável. Essa ordem precisa ser lembrada de uma possível nova era das trevas.

A necessidade de estrelas fixas, de certeza no meio de nossas tênues vidas em um planeta imprevisível, é real e compreensível. Líderes políticos e religiosos que podem empacotar e transmitir verdades absolutas encontram um público receptivo, mas não criam sociedades saudáveis. Um movimento como o Hizmet, com sua abertura ao empreendimento humano contemporâneo, pesquisa, educação, democracia e diversidade, ameaça tal rigidez. Precisamos pensar em uma expressão do Islã como o movimento Hizmet faz: com apoio a um cardápio completo de pluralismo, liberdades democráticas e constitucionais, direitos humanos universais e diversidade religiosa.

Essas crenças são exemplificadas pelo Hizmet, um movimento social polimórfico descentralizado, que em menos de trinta anos fez contribuições significativas para a paz intercomunitária e nacional, o diálogo inter-religioso, o desenvolvimento econômico e a educação. Essas contribuições são evidentes nas atividades, pesquisas, plataformas e influência criativa do Movimento no Reino Unido e no mundo. Em um momento de ansiedade e desânimo, o Hizmet representa uma "Caravana de Esperança", e não um trem do desespero.

Referências

Bruce, Steve. 1996. Religion in the Modern World: From Cathedrals to Cults, Oxford: Oxford University Press.
Cesari, Jocelyne. 2004. When Islam and Democracy Meet, London/New York: Palgrave Macmillan.
Citlak, M. Fatih & Bingul, Huseyin. 2007, Rumi and his Sufi Path of Love. Istanbul/New York: Tughra Books.
Fenn, Richard K. 2009. Key Thinkers in the Sociology of Religion. London: Continuum International Publishing Group.
Harris, Harriet A. 2004. “Fundamentalisms” in "Encyclopedia of New Religions," Partridge, Christopher Oxford, Lion Publishing.
Ramadan, Tariq. Western Muslims and the Future of Islam Oxford, Oxford University Press. 2004.

*O Rev. Dr. Ian G. Williams ensina e supervisiona a pesquisa em Estudos Islâmicos no Instituto Markfield de Ensino Superior / Newman University, Reino Unido.

Este artigo foi publicado pela primeira vez na edição especial da Fountain Magazine © Blue Dome Press

Fonte: https://fgulen.com/en/what-went-wrong-with-turkey/51567-the-hizmet-movement-of-fethullah-gulen-and-the-common-good-a-perspective-from-the-uk
Blogger Wordpress Gadgets