Sevgi Akarçeşme*
Como clérigo proeminente, Fethullah Gülen tem de expressar sua opinião sobre política, defende o autor.
Tentar entender o que tem acontecido na Turquia nos últimos dois meses é impossível sem considerarmos o escândalo de corrupção que veio à tona em 17 de dezembro de 2013. Contudo, um artigo publicado pela Al Jazeera faz exatamente isto, ignora qualquer referência à maior investigação sobre suborno que o país já viu.
Muito pelo contrário, como que para desviar a atenção do caso de corrupção, a coluna culpou unicamente o erudito islâmico Fethullah Gülen, dizendo que ele objetiva controlar o Estado por meio de seus seguidores dentro de órgãos governamentais.
O Movimento Hizmet (Serviço) é uma comunidade religiosa e social inspirada pelos ensinamentos pacíficos e progressistas de Gülen e engloba uma ampla rede de pessoas não somente na Turquia, mas também em 160 países ao redor do mundo.
É verdade que Gülen não é um simples pregador. De fato, ele encoraja turcos devotos a receberem a melhor educação possível, a irem além dos limites que o Estado burocrático e autoritário lhes impõe e a conquistarem posições que antes estavam tradicionalmente reservadas à elite. Por isso, ele se tornou alvo do Militarismo Kemalista, que vê o Movimento Gülen como ameaça ao opressivo Estado laico turco.
Gravações manipuladas
Quando o governo militar lançou uma campanha de guerra psicológica para derrubar o governo islamista na Turquia, em 28 de fevereiro de 1997, Gülen, naturalmente, enfrentou a ira de soldados e se tornou alvo. Alguns meios de comunicação, que estavam sendo usados pelo militarismo como “ferramenta conveniente”, publicaram gravações manipuladas de Gülen para criar a impressão de que seus seguidores haviam se “infiltrado” no Estado. Na verdade, esse era um argumento que o opressivo Estado laico, frequentemente, usava contra cidadãos religiosos.
Assim, é uma ironia do destino que muçulmanos devotos recorram às mesmas ferramentas usadas, anteriormente, pelo repressivo regime militar para desestabilizar Gülen e seu movimento.
A coluna recente da Al Jazeera se referia às mesmas gravações usadas pelo governo militar durante o período do golpe de 28 de Fevereiro.
Apesar de Gülen ter sido processado por tentativa de mudar a natureza do regime, durante o ápice da pressão militar em 1999, ele foi inocentado de todas as acusações em um julgamento que durou oito anos.
Não é segredo que Gülen encoraja os simpatizantes do Movimento Hizmet a não se recusarem a assumir cargos no dentro do Estado. Qualquer cidadão turco, pelo menos no papel, é igualmente elegível a trabalhar para o governo desde que tenha as qualificações necessárias.
Quem está se infiltrando?
Quem pode acusar um cidadão turco de se “infiltrar” em seu próprio Estado? O Estado pertence apenas a um certo grupo ou interesse? Dizer que o Movimento Hizmet se infiltrou no Estado é o mesmo que admitir que este estava sob o controle de outra pessoa.
Há pessoas de todas as classes sociais, de todos os segmentos da sociedade e de todas as faixas etárias que apoiam a Gülen. Não surpreende que haja, também, policiais, juízes e promotores que aprovem a interpretação dele sobre o Islã.
No entanto, para declarar que o objetivo é tomar o Estado, é necessário apresentar evidências concretas de que essas pessoas estão recebendo instruções de Gülen ou do Movimento Hizmet ao invés de seus superiores dentro dos órgãos estatais.
O primeiro-ministro tem alardeado que um “estado paralelo” dentro do Estado tem o objetivo de derrubar o seu governo, em referência ao Movimento Hizmet. Apesar da transferência e reposicionamento de milhares de policiais e centenas de juízes e promotores, o governo de Erdogan não conseguiu encontrar uma única evidência de um “estado paralelo”
Tendo em vista todos os sinais de corrupção, torna-se evidente que essa história de “estado paralelo” é um inimigo imaginário que Erdogan usa em sua luta contra “moinhos de vento”.
Criticar Gülen por expressar opiniões sobre outros assuntos além de religião é outro argumento Kemalista. Os fundadores da República da Turquia não queriam pessoas religiosas envolvidas em política e problemas sociais. Como líder espiritual de um movimento global – com atividades que vão desde educação à meios de comunicação; de empresas à organizações de ajuda humanitária – é, simplesmente, normal que Gülen expresse suas opiniões sobre assuntos não-religiosos.
Em democracias avançadas, grupos de pressão são bem-vindos e a sociedade civil é encorajada a servir como mecanismo de controle dentro do sistema.
Em qualquer lugar do mundo, líderes espirituais e suas opiniões são levadas a sério devido a seu impacto nas massas. No caso de Gülen, foi provado muitas vezes que ele usa sua influência de maneira construtiva e positiva, sempre pedindo às pessoas que ajam pacificamente e dentro dos limites da lei.
Com relação ao infeliz incidente com o Mavi Marmara, no qual nove turcos inocentes foram assassinados por soldados israelenses em águas internacionais, Gülen não “culpou” os ativistas, como disse Kaplan. Ele disse que aconselhava seus seguidores a cooperarem com as autoridades, quando o propósito é levar ajuda aos palestinos. Gülen, também, publicou uma mensagem expressando suas condolências e descrevendo as vítimas como “mártires”.
Mulheres que sofrem discriminação por usarem o véu, na Turquia, sabem muito bem que demonstrar religiosidade é uma razão para ser excluído de posições estatais. Não apenas muçulmanos devotos são forçados a esconderem sua identidade pelo regime repressivo, mas também o são curdos, alevitas e não-muçulmanos.
Ironicamente, hoje, é o governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), vítima de opressão no passado, que oprime o Movimento Hizmet e abertamente discrimina seus membros.
O que parece estar acontecendo na Turquia agora é um confronto entre o Movimento Hizmet e Erdogan. Porém, quando se olha além da superfície, é fácil detectar a liderança cada vez mais autoritária e arbitrária do governo de Erdogan. Tudo que Gülen pede é uma Turquia mais democrática.
Não foram os princípios do Movimento Hizmet que mudaram, mas a posição do governo – que, até recentemente, foi bem-sucedido em enganar a muitos com seu disfarce democrático.
*Colunista de “Zaman” (jornal turco com maior circulação no país), correspondente e blogger de “Today’s Zaman”, jornal em inglês na Turquia.
Publicado em Al Jazeera, 02 de março de 2014.