Victor Gaetan
Em vídeo publicado em seu website, dezembro passado, o erudito islâmico turco Fethullah Gülen clama a Deus a amaldiçoar o Primeiro-Ministro Turco Recep Tayyip Erdogan. Gülen, que vive em exílio nos Estados Unidos desde 1999, declarou em sermão transmitido na TV turca, “Aqueles que não veem o ladrão, mas perseguem os que estão tentando prender o ladrão: que Deus derrame fogo sobre suas casas, arruíne seus lares, quebre suas unidades.” Isto estava muito além dos laços seculares do debate político na Turquia.
Porém, focar na falta de polidez política de Gülen é ignorar o principal. Gülen e Erdogan têm sido descritos no Ocidente como rivais políticos, mas sempre houve mais em jogo no conflito entre eles do que problemas mundanos. Enquanto Erdogan se farta, com frequência, de uma retórica política islamista, é Gülen quem tem tentado fazer contribuições reais como intelectual islâmico para desenvolver uma Escola de Islã genuinamente moderna que reconcilie religião com democracia liberal, racionalismo científico, ecumenismo e livre iniciativa. Independentemente de quem vença a batalha pelo futuro político da Turquia, é vital que o legado religioso de Gülen seja preservado.
Iluminismo Igualitário
Erdogan tem, repetidamente, retratado Gülen e seu movimento religioso conhecido como Hizmet (traduzido como “Serviço”), como integrantes de uma conspiração política, chamando-os de “estado paralelo” responsável por iniciar uma série de investigações de corrupção contra sua administração. Essas acusações são impossíveis de serem provadas. O Hizmet não tem filiação formal, sede ou hierarquia, o que torna impossível saber se gulenistas são maioria na força policial e no judiciário, quanto mais orquestrar um golpe de estado. Há muitas organizações civis explicitamente ligadas a Gülen na Turquia, porém, mantendo-se alinhadas aos ensinamentos de Gülen, elas nem apoiam nem rejeitam qualquer partido político.
Apesar de Gülen sempre ter considerado que o muçulmano pio pudesse ser atraído à política, ele adverte contra permitir que a religião seja usada como ferramenta em busca de poder. Neste sentido, Gülen segue os passos de Said Nursi, um grande erudito sufista turco que inspirou uma revitalização islâmica no fim do período otomano e na república de Ataturk. Risale-i Nur (Epístolas da Luz), o comentário sobre o Alcorão, de 6.000 páginas, escrito por Nursi, argumenta que o verdadeiro conhecimento espiritual está acessível a todos os muçulmanos sem a liderança de um “mestre”. Nursi considerava materialismo um inimigo do Islã, mas também defendia o ensino de ciência moderna em escolas muçulmanas.
Gülen endossa esta mesma abordagem básica. Nascido no leste da Turquia em 1941, ele cresceu estudando o Alcorão e começou a dirigir uma mesquita e um centro de estudos na cidade de Izmir na década de 1960. Indo além do conceito de Nursi sobre fortalecimento da consciência religiosa ou disciplina interna, Gülen enfatizou a importância do serviço ao público como forma de fieis glorificarem a Deus ao reprimirem impulsos egoístas.
Esses ensinamentos estavam em contraste profundo com os pronunciamentos políticos de grupos islâmicos, como a Irmandade Muçulmana, que ganhavam terreno no Oriente Médio em meados do século XX. Enquanto a Irmandade Muçulmana considera ser uma obrigação religiosa controlar o Estado e fazer da Lei Islâmica a base da jurisprudência, Gülen diz que a religião sofre com a politização. Enquanto a Irmandade sugere que jihad é, necessariamente, um conflito armado, Gülen enfatiza que jihad é um esforço moral e espiritual.
Em 1970, Gülen foi preso pelo recém instalado governo militar e sua licença para pregar foi revogada. Porém, seus discursos privados para pequenos grupos – em mesquitas, teatros, cafés e escolas – eram gravados e distribuídos. Gülen usou a influência de sua fama crescente para estabelecer uma série de albergues para estudantes, ou “casas de luz”, que ofereciam cursos preparatórios para vestibulares universitários. Em 1979, amigos pessoais de Gülen iniciaram uma editora para que pudessem prover o número crescente de estudantes com materiais de estudo. O Colégio Yamanlar, a primeira escola secundária inspirada por Gülen, foi fundada em 1982, em Izmir. Em 1983, ele tinha seguidores em toda nação.
Hoje, os simpatizantes de Gülen dirigem mais de 1.500 escolas e universidades em 120 países, incluindo Afeganistão, Áustria, Bósnia, Indonésia, Japão, México, Sudão e Estados Unidos (Somente no Texas, afiliados de Gülen gerenciam 26 escolas públicas “charter”). O Movimento Gülen provê inúmeras bolsas de estudos para que alunos de baixa renda frequentem suas escolas, que em sua maioria enfatizam ciência e matemática. Ao contribuir como voluntários ou doadores para a rede educacional do Movimento, os participantes se envolvem em uma forma de caridade santificada.
Seu compromisso com a educação como principal solução para os problemas que atormentam a maioria das sociedades muçulmanas é a mais concreta expressão dos ensinamentos religiosos de Gülen. Trabalhando com textos sagrados do Islã – Alcorão, hadices (ditos do Profeta) e Sira (biografia do Profeta) – assim como tradições culturais turcas e otomanas, Gülen desenvolveu uma forma distinta de teologia islâmica que foca o envolvimento social em vez do envolvimento político.
O cientista político baseado em Utah Hakan Yavuz, autor de “Toward an Islamic Enlightenment: The Gulen Movement” (Para um Iluminismo Islâmico: O Movimento Gülen), vê quatro características desafiadoras no projeto de Gülen. Primeiro, Gülen enfatiza que a devoção de um crente pode ser medida por suas ações práticas, especificamente, o grau com o qual a pessoa melhora a condição humana. Segundo, Gülen diz que o Islã precisa ser uma religião educacional. Ele crê que muçulmanos devem buscar consenso em suas comunidades e deveriam valorizar a participação social e diálogo com outros grupos (O movimento de Gülen enfatiza o diálogo inter-religioso, especialmente, com cristãos e judeus). Terceiro, Gülen ensina sobre a inviolabilidade do direito individual. Envolvimento religioso, ele diz, deve ser voluntário, é por isto que os seguidores de Gülen são chamados de “voluntários” e seu número total nunca foi oficialmente determinado. Finalmente, o Movimento Gülen endossa o pensamento crítico como fundação para o conhecimento que glorifica a Deus, em vez de algo que contradiz a Revelação. Ciência, Gülen ensina, é um veículo para que muçulmanos honrem com seus deveres religiosos e melhorem as condições econômicas de suas sociedades.
Com relação ao que Gülen tem a dizer sobre política, quase sempre tem sido em favor da promoção da democracia e tolerância cultural. Perguntado pelo The New York Times sobre sua atitude para com o governo turco, Gülen respondeu, “Sempre acreditei em estar do lado do Estado de Direito, e também acredito na importância de compartilhar ideias com oficiais do Estado que são um promessa ao futuro do país. De maneira apropriada, independentemente de quem está no comando, mantenha um nível razoável de proximidade e mantenha uma atitude positiva para com eles”. Ele também enfatizou a importância de se manter uma sociedade civil sadia fora do controle do Estado. Escolas e iniciativas privadas, voluntariado – estas são as instituições que a Turquia precisa se quiser manter sua cultura tradicionalmente inclusiva.
A teologia de Gülen caminhou de mãos dadas com a revolução capitalista da Turquia, iniciada pela desregulamentação econômica em 1980. Os novos investidores do país eram muçulmanos devotos que se agarravam aos ensinamentos de Gülen para justificar sua calorosa recepção da livre empresa, fortes instituições democráticas, diálogo e comércio com outras religiões e grupos étnicos. Gülen, em contrapartida, instigou esta nova classe capitalista a trabalhar duro para prosperar – não pelo ganho pessoal, mas para melhorar o bem estar espiritual da sociedade. O Profeta Muhammad foi um mercador, Gülen relembra.
Casamento de Conveniência
Não deveria ser surpresa que o Movimento Gülen tenha visto um aliado em potencial no partido de Erdogan (AKP). Em 2002, sob a bandeira do AKP, Erdogan falou em favor de maior liberdade religiosa e econômica. Assim como o AKP, o Movimento Gülen identificava o regime militar e a velha elite econômica laica como impedimento para aquela liberdade. Apesar de os gulenistas nunca terem oferecido um apoio explícito, eles pareciam entusiasmados em trabalhar com o AKP. Após a vitória de Erdogan, o AKP (assim como oficiais do Departamento de Justiça supostamente afiliados ao Movimento Gülen) apoiaram uma série de processos judiciais que mandaram centenas de militares para prisão. Contudo, houveram muitas falhas nos métodos dos julgamentos e a culpa recai, principalmente, sobre os ombros do AKP, que tinha total autoridade sobre os procedimentos.
No entanto, a aliança não durou. O AKP e os gulenistas têm ideias fundamentalmente diferentes sobre a identidade turca e como ela se relaciona com Islã. O AKP tem raízes na ideologia da Visão Nacional Turca, que foi originalmente apresentada pelo ex-primeiro-ministro turco Necmettin Erbakan em seu manifesto Milli Görüş (Visão Nacional), publicado em 1969. Erbakan dizia que a Turquia deveria se afastar do Ocidente e formar uma união política, econômica e militar com países muçulmanos. De acordo com esta visão, a força nacional, especialmente quando em conflito com o Ocidente, é prioridade com relação a instituições democráticas saudáveis. Erbakan ainda é uma fonte de inspiração para o AKP em geral e, em particular, para Erdogan. Quando Erbakan faleceu, em 2011, Erdogan interrompeu uma viagem à Europa para comparecer ao funeral, presenciado por centenas de milhares de pessoas em Istambul. A organização islamista turca mais influente da Alemanha é uma comunidade Milli Görüş que Erdogan encorajou a resistir à absorção ocidental, de acordo com os ensinamentos de Erbakan.
Como se podia prever, o Hizmet e o AKP estão em conflito sobre a política externa belicosa e as manobras domésticas antidemocráticas de Erdogan. Quando uma ONG turca tentou quebrar um bloqueio israelense em Gaza e foi confrontada pela Marinha Israelense (resultando em nove mortes), Erdogan acusou Israel de terrorismo e genocídio. Gülen respondeu à beligerância de Erdogan dizendo que ela não era “frutífera”, e adicionou que [o Movimento] sempre buscava permissão israelense quando suas instituições de caridade queriam ajudar o povo de Gaza.
Outro ponto de contenda tem sido a relação da Turquia com a União Europeia. Como forte defensor de laços mais próximos com a Europa, o Movimento Gülen se sente frustrado pela recusa de Erdogan em buscar negociações mais sérias sobre o acesso à UE. Ocasionalmente, Erdogan tem lançado políticas - como a legislação que restringe o acesso à Internet e redução da independência de promotores públicos – que parecem desenhadas para antagonizar os oficiais da União Europeia. Os gulenistas também se mostram preocupados com o apoio de Erdogan à Irmandade Islâmica no Egito.
Liberdade de expressão sempre foi um assunto crítico para o Movimento Gülen, por isso eles têm se manifestado contra a perseguição de Erdogan a jornalistas e seu desprezo pelo diálogo democrático. De acordo com o Comitê de Proteção a Jornalistas, a Turquia encarcerou mais jornalistas nos últimos dois anos do que qualquer outro país no mundo (seguido por Irã e China). Simpatizante de Gülen, Alp Aslandogan, presidente da Aliança por Valores Compartilhados situada em Nova Iorque, conta sobre a “intimidação, inspeções e multas” que editoras enfrentam agora. “Donos de meios de comunicação sofrem ameaças a seus negócios. Nunca na história da Turquia uma única pessoa ou partido alcançou este nível de subserviência da mídia.”
A resposta de Erdogan, no último verão, aos protestos de Gezi Parque foi especialmente problemática para os gulenistas. De certa forma, o diverso grupo de manifestantes, que originalmente se reuniu para demonstrar contra a demolição de um parque de Istambul, era um modelo do tipo de sociedade civil pluralista engajada que o Movimento Gülen defende. Erdogan decidiu mandar a polícia dispersar os manifestantes a força, o que resultou em dias de confronto violento. Gülen pôs a culpa em Erdogan por não ouvir as demandas dos manifestantes logo de início. Isso parece ter convencido Erdogan a declarar guerra contra o Movimento Gülen. Em setembro, Erdogan anunciou que o governo planejava fechar todas as escolas privadas que ajudavam estudantes a se prepararem para o vestibular: o Movimento Gülen administra cerca de 20% destas escolas na Turquia e elas representam uma fonte vital de renda, assim como um dos principais meios pelos quais as ideias de Gülen são introduzidas ao público.
Erdogan e o AKP têm descrito o Movimento Gülen como uma conspiração faminta por poder. Porém, há pouca evidência de um tentativa gulenista de ascensão poder. O Movimento tem se mantido verdadeiro a seus ensinamentos ao devotar enorme quantidade de recursos e atenção ao gerenciamento das escolas, organizações de caridade e empresas de comunicação na Turquia e no exterior. Gulenistas não tentaram uma infiltração coordenada no AKP, ou a infiltração de seus próprios membros no parlamento. Eles, regularmente, condenam a corrupção do AKP e a violação da ética islâmica e princípios do Hizmet. Não há razão para não levar este criticismo em consideração.
Gülen mostra que ele se recusa a ser intimidado, mas resta a questão se o Movimento pode suportar a implacável campanha do AKP. Erdogan está, visivelmente, tentando marginalizar o Movimento Gülen, mesmo às custas do Estado de Direito na Turquia. Esta semana, o Presidente Abdullah Gul assinou uma lei que permite agências do governo bloquearem qualquer website sem ordem judicial. Semana passada, o parlamento passou uma lei que dá ao Executivo total controle sobre o judiciário, permitindo que o governo nomeie e exonere promotores quando quiser.
A Turquia poderia, claramente, ser prejudicada se os ensinamentos gulenistas de tolerância e direitos individuais fossem efetivamente silenciados. No entanto, a perda da cultura islâmica seria uma tragédia ainda maior.
Publicado em Foreign Affairs, 20 de fevereiro de 2014.
Traduzido do Inglês por Camila Oliveira Vatandaş