Mehmet Kalyoncu*
A Turquia é um país no qual as estranhezas não têm fim. A maioria dos turcos (e observadores estrangeiros) se pergunta como é possível que um partido político governante mais reformista, economicamente bem-sucedido e pró-europeu do que qualquer outro, na história da república, seja desmantelado. O caso de Fethullah Gülen se soma a muitas outras estranhezas do tipo. Gülen foi processado em seu próprio país por uma suposta tentativa de destruir o sistema estatal corrente e substituí-lo por um governo centrado em religião. Contudo, Gülen é amplamente reverenciado tanto em seu país quanto no exterior por suas ideias e trabalhos que inspiraram um movimento cívico mundial focado em educação e diálogo intercultural.
A revista The Economist, recentemente, chamou a atenção para Gülen e a escolas ao redor do mundo inspiradas por suas ideias. Um artigo do New York Times sugere que estas escolas turcas, inspiradas por Gülen, oferecem uma visão mais suave do Islã a países como o Paquistão. Vários estudiosos ocidentais argumentam que Gülen é uma ponte entre o Islã e o Ocidente. A revista Foreign Policy o considera um dos 100 maiores intelectuais públicos do mundo. Alguns comentaristas marginais o veem como uma ameaça. Finalmente, uma reportagem da Reuters descreve Gülen como um advogado do Islã moderado, enraizado na vida moderna e questiona se ele é uma ameaça ou um benfeitor.
O que ele, realmente, é? Ameaça ou filantropo? Na realidade, Fethullah Gülen – e o movimento mundial inspirado por ele – não é nenhum, nem outro, mas ambos. Afinal, ambas as descrições são relativas e dependem do ponto de vista de quem as analisa.
Por que Gülen Parece uma Ameaça aos Protecionistas do Status-quo?
Fethullah Gülen goza de uma popularidade sem precedentes, na Turquia, e que cresce constantemente, no exterior. Ele tocou as vidas das três últimas gerações de turcos e continua a fazê-lo por meio de textos e discursos transmitidos nas mídias de massa e na Internet. O fenômeno Gülen, que mais tarde se desenvolveria em um amplo, não-confrontador, movimento cívico, teve seu início na década de 1960, quando Gülen começou a pregar em mesquitas e a falar em conferências abertas ao público, em toda Turquia. Sua audiência era composta, principalmente, por conservadores de meia idade, adolescentes e jovens adultos (estudantes universitários e do Ensino Médio). O primeiro desses dois grupos, mais tarde, financiaria cursos pré-vestibulares e escolas secundárias privadas, enquanto os membros do segundo grupo ensinariam e administrariam estas escolas. Os cursos alcançaram um sucesso sem precedentes em preparar estudantes tanto para os vestibulares de universidades nacionais quanto para competições internacionais de ciências, atraindo mais alunos para as escolas e mais voluntários para os projetos do Movimento. No entanto, nenhum dos ensinamentos de Gülen foram, literalmente, ensinados nessas instituições, a moral dos professores falava o suficiente sobre quem os inspirava e às escolas.
Os primeiros ensinamentos de Gülen, geralmente, são caracterizados pela ênfase na complementariedade de religião e ciência. Além da extensiva quantidade de livros que ele próprio escreveu, muitos outros foram compilados a partir de seus sermões e disponibilizados ao público. Áudios e vídeos de seus discursos alcançaram uma audiência ainda maior. Ao pôr em prática o que Gülen prega, as escolas obtiveram um sucesso nacional e internacional. Isto convenceu a maior parte do público turco de que, ao mesmo tempo em que poderiam preservar valores islâmicos, poderiam ir mais longe. Aqueles que estavam presos na periferia desde a imposição de um regime estritamente secularista perceberam que as pessoas poderiam, de fato, continuar muçulmanos praticantes e, simultaneamente, se tornar burocratas, juízes, diplomatas e até generais, primeiros-ministros e presidentes.
Atribuir toda a transformação social, na Turquia, ao Movimento Gülen seria superestimar a influência de Gülen, contudo, seu impacto é inegável. Michael Rubin do American Enterprise Institute afirma que os chamados “membros Gülen dominam a polícia e divisões do Ministério do Interior turcos. Sob a administração do Primeiro-Ministro Recep Tayyip Erdoğan, um dos simpatizantes de Gülen mais proeminentes, dezenas de milhares de admiradores de Gülen adentraram a burocracia turca.” Pode ser um verdadeiro desafio para milhares (ou milhões) de turcos provarem que eles não são soldados rasos de Gülen somente porque o admiram. Enquanto isso, eles continuam a representar uma ameaça tanto à elite exclusivista turca – que tradicionalmente ocupava o espaço político, econômico e judicial – quanto aos interessados estrangeiros, que haviam aproveitado a oportunidade de influenciar, se não manipular, a Turquia por meio daquela elite.
Por que Gülen Pode ser Visto como um Filantropo?
Considerando-se o funcionamento de escolas em todo o mundo e o corrente diálogo inter-religioso e intercultural inspirados por ele, Gülen pode ser considerado um filantropo. Ele é visto como tal pela maioria daqueles que foram beneficiados por seus trabalhos e inspiração, de uma forma ou de outra. Por exemplo, Kerim Balci, da Turquia, um colunista proeminente no jornal turco Zaman, afirma que o Movimento o tirou se sua vila e o elevou a uma posição que ele não poderia nem imaginar. Muid Rasul, do Kenya, graduado pela Light Academy de Nairóbi (fundada pelos voluntários do Movimento Gülen), menciona o papel de seus dedicados professores em seu sucesso, quando diz, orgulhosamente, ter aceitado uma bolsa integral para estudar na Universidade de Harvard, tendo declinado oferta semelhante da Universidade de Yale. Um empresário, em Kampala, Uganda, agradece sua contraparte turca, inspirada por Gülen, por ensiná-lo e a seus compatriotas sobre como abrir escolas com seus próprios recursos, sem esperar ajuda do Estado e de outros doadores. De maneira similar, uma mãe de etnia curda, de uma vila distante no sudeste da Turquia, que mal sabe falar turco, expressa sua gratidão a Gülen, pois seus admiradores ajudaram sua filha a ir para escola: “Eu não pude dizer nada durante os preparativos do meu casamento e muito menos na minha infância. Porém, meu marido pede a opinião da minha filha com frequência sobre vários assuntos e ela é capaz de influenciar suas decisões.”
Além disso, Gülen muda vidas por meio de grandes diálogos inter-religiosos que, iniciados na Turquia, agora se espalham por diversos continentes. Um cristão assírio, em Mardin, diz “Antes de Fethullah Gülen e a Fundação de Jornalistas e Escritores terem começado o processo de diálogo inter-religioso, em meados da década de 1990, as pessoas ao nosso redor nos consideravam meros ‘infiéis’. Depois de Gülen iniciar o diálogo com líderes cristãos e judeus, as pessoas passaram a nos respeitar como ‘Povos do Livro.’” Gülen pode visto como um filantropo por este cristão e muitos outros que passaram por experiência semelhante. Gülen, também pode ser visto como benfeitor por um judeu que o tenha ouvido denunciar publicamente atentados suicidas.
Com relação ao poder, é difícil argumentar que Gülen busca poder político levando em consideração o fato de que não há, em seus setenta anos de vida, indicações de tentativas tangíveis de estabelecimento de uma organização política ou de ascensão ao poder. No entanto, é razoável dizer que Gülen pode estar buscando influência, já que ele é advoga a favor de um Islã moderado baseado na vida moderna, liberdade de expressão e liberdade individual para a prática religiosa. Numa análise derradeira, é normal que Gülen seja visto como uma ameaça por uns e como filantropo por outros. O que, realmente, importa é a forma como alguém percebe Gülen e o movimento cívico mundial inspirado por ele.
*um analista político e autor de A Civilian Response to Ethno-Religious Conflict: The Gülen Movement in Southeast Turkey (Uma Resposta Civil ao Conflito Étnico-Religioso: O Movimento Gülen no Sudeste da Turquia).