Como Embaixador aposentado, sinto mais liberdade para tratar deste assunto do que meus colegas na ativa, que naturalmente evitam criar problemas com o atual governo da Turquia. Quero enfatizar que a palestra, a seguir resumida, é de minha única e exclusiva responsabilidade pessoal e em nada compromete a posição do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Por isso, em minha intervenção nesta conferência da prestigiosa USP, pretendo dar meu testemunho do que observei, como cidadão e não necessariamente como diplomata, no período em que tive o privilégio de ser o Cônsul-Geral do Brasil em Istambul, de 2012 a 2015.
Logo que cheguei àquela impressionante metrópole de 15 milhões de habitantes e milênios de História (a antiga Bizâncio, Constantinopla e, posteriormente, a capital do Império Otomano), pude notar como o movimento Hizmet – também conhecido como movimento Gulen – exercia uma influência positiva no início do governo do então Primeiro Ministro Recep Tayyip Erdogan e no seu partido AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), os quais se apresentavam como democráticos e liberais progressistas. Recorde-se que o AKP havia sido fundado, como um partido liberal pró União Europeia, em 2001, quando a Turquia ainda se encontrava sob o poder de generais seculares. Na visita da Presidente Dilma Rousseff em 2011, por exemplo, a Tuskon, entidade patronal vinculada ao Hizmet, organizou um amplo e proveitoso encontro entre empresários de nossos países. Na época, como eu vinha da Itália, comparava o partido AKP, então sob as boas influências do Hizmet , com a democracia cristã: seria uma espécie de democracia islamista.
Contudo, após as denúncias de corrupção contra Erdogan, divulgadas pela imprensa então ainda livre, Fethullah Gulen decidiu não mais apoiar o governo. A partir daí, Erdogan, cada vez buscando mais poder, passou a perseguir todas iniciativas patrocinadas pelo movimento Hizmet. Contando com votos sobretudo das camadas mais tradicionais, periféricas e pouco educadas da sociedade turca (aqueles que não conseguiram acompanhar a modernização promovida pelo herói da pátria Mustafa Kemal Ataturk, primeiro Presidente da República da Turquia, de 1923 a 1938), e graças a um dispendioso “marketing” politico, após 11 anos como Primeiro Ministro e, seguindo o exemplo de seu atual inimigo Vladimir Putin na Rússia, Erdogan conseguiu eleger-se Presidente da República. Com o apoio de seu partido AKP, majoritário no Parlamento, vem exercendo na prática poderes anteriormente exclusivos do Chefe de Governo. Não esconde suas intenções de alterar a Constituição para agora transformar o regime parlamentarista em presidencialista. Há poucos dias forçou o Primeiro Ministro Davutoglu a renunciar, simplesmente porque estava tomando iniciativas sem lhe consultar.
Como bem sabemos, a Turquia não é o único país com governo populista em que poderes ditatoriais são obtidos graças a votos, em princípio democráticos. Já dizia Winston Churchill que a democracia é a pior forma de governo, excetuando todas as demais já testadas.
Assim, com o controle absoluto do Governo e também do Judiciário, Erdogan vem dificultando o trabalho de empresários, de escolas e Universidades, dos jornalistas mais críticos (alguns dos quais na prisão), de programas culturais (como os do CCBT), enfim de todos aqueles simpatizantes do movimento Hizmet e dispostos a contribuir para o diálogo entre civilizações, culturas e religiões. Sobretudo num mundo em que o islamismo se apresenta dividido e com alguns extremistas radicais e terroristas, o movimento Hizmet serve de exemplo para uma convivência pacífica e respeitosa entre as religiões. Tal como ocorre no Brasil, em que todas as religiões são aceitas e convivem em harmonia. Outras semelhanças entre os valores apreciados por nossos povos seriam o respeito aos direitos humanos, o combate à corrupção, a busca do crescimento econômico que corresponda às imensas potencialidades de nossos grandes países emergentes, bem como a defesa de uma sociedade mais justa, em que se possa reduzir a lamentável e imensa desigualdade social entre os mais pobres e os mais ricos.
Não poderia deixar de destacar o importante trabalho em prol das relações culturais entre o Brasil e a Turquia que vem sendo realizado pelo CCBT. Além de manter, em Santo Amaro, a escola Belo Futuro Internacional, para educação acadêmica brasileira infantil, média e fundamental, com aulas em português, inglês e turco (aliás duas das funcionárias brasileiras do Consulado-Geral em Istambul estudaram nessa escola), o CCBT promove o intercâmbio de estudantes turcos que vêm estudar em Universidades brasileiras e de estudantes brasileiros que frequentam Universidades turcas (só em Istambul há 70 Universidades, quase todas de excelente qualidade, e algumas em que os cursos são ministrados em inglês). Ademais, o CCBT também oferece cursos de turco nas quatro cidades em que tem representação (São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Belo Horizonte). O CCBT patrocina igualmente o lançamento e a tradução para o turco de livros brasileiros. Pude testemunhar o grande sucesso da apresentação em Istambul, por seus ilustres autores, de livros traduzidos para o turco do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso e do Senador Cristovam Buarque. Pude também verificar a relevância das várias missões de alto nível que o CCBT levou para a Turquia de artistas, políticos, jornalistas, professores, empresários, dentre outros. Sou daqueles que acreditam que as boas relações econômicas e políticas entre países são construídas a partir de um melhor conhecimento mútuo de suas respectivas culturas. Como diplomata, só posso elogiar essas iniciativas – como as do CCBT – que abrem caminho para um maior intercâmbio entre os diferentes agentes que atuam em nossa sociedade. Não se deve esperar que apenas os governos se responsabilizem pelas relações internacionais. Os governos podem ajudar, mas as relações efetivas resultam, na verdade, da troca de experiências entre representantes, em cada país, dos diversos setores: econômico, político, cultural, educacional, jornalístico, turístico, etc. O setor de promoção comercial do Consulado em Istambul já atendeu a vários empresários turcos interessados em fazer negócios com o Brasil, muitos dos quais do movimento Hizmet, como por exemplo um importador de granito brasileiro que também exporta para nosso país mármore turco.
O importante é registrar que o movimento Hizmet (que significa “servir” em turco) não é religioso, nem ideológico ou politico, mas, sim, um movimento civil com inspiração na fé islâmica tolerante, moderna e compatível com a democracia, com representações em cerca de 150 países e milhões de seguidores em todo mundo.
Em recente visita aos EUA, pude constatar a amplidão e importância de outros Centros Culturais do Hizmet em inúmeras cidades do mundo que se apoiam mutuamente. Trata-se, na verdade, de uma espécie de sociedade civil transnacional, cujos voluntários administram mais de mil escolas no mundo e prestam ajuda aos mais necessitados, independentemente de suas respectivas religiões.
O que mais me impressiona é que, apesar de não existir uma estrutura organizacional, os Centros demonstram, de modo geral, a mesma dinâmica de funcionamento e, como não possuem um orçamento-programa comum, funcionam à base de contribuições voluntárias, todos com a mesma disposição de servir para o mesmo propósito.
O movimento Hizmet surgiu no final da década de 1960, na cidade de Izmir, e conta atualmente com o apoio de muitos empresários, professores, jornalistas, enfim de vários formadores de opinião. Em artigo publicado no jornal Zaman (recentemente invadido e fechado pelo governo de Erdogan), o Senador Cristovam Buarque assinalou como exemplar o apoio prestado à educação por empresários turcos do Hizmet. O jornal Zaman sempre foi de alta qualidade e sua edição em inglês era a mais lida por todos os diplomatas e estrangeiros que viviam na Turquia.
Nos primeiros anos em que servi em Istambul, realizava-se anualmente um Festival Internacional de Língua e Cultura (IFLC), uma espécie de olimpíada cultural, em que jovens de vários países, em geral alunos de turco nos cursos patrocinados pelo Hizmet, apresentavam seus talentos artísticos. Numa dessas olimpíadas, foi vencedora uma brasileira que cantava em turco. Lamentavelmente, contudo, o governo Erdogan decidiu proibir a realização do IFLC na Turquia. O evento passou a ser organizado em outros países, inclusive no Brasil (São Paulo), em 2016, graças ao patrocínio e empenho do CCBT, com imenso sucesso de público e de crítica. Tanto que os artistas participantes brasileiros foram levados para atuações na Alemanha, África do Sul, Austrália, Bélgica, Romênia e nos EUA (Texas, Washington DC e New York). O fato a ser acentuado é que, apesar das dificuldades enfrentadas, o CCBT continua a trabalhar em prol do estreitamento das relações entre nossos países e, por isso mesmo, merece todo nosso apoio.
Para concluir, e resumindo o essencial de minha intervenção, posso testemunhar a relevância dos serviços prestados pelos diversos agentes do movimento Hizmet – culturais, empresariais, jornalísticos, educacionais, filosóficos, dentre outros formadores de opinião, tanto na Turquia, quanto em muitos outros países. Ao pregarem a tolerância religiosa, os investimentos na cultura e na educação, a democracia, a liberdade de imprensa, o combate à corrupção, a justiça social e outros valores caros a nossos povos, os responsáveis pela propagação dos ideais do pregador Fethullah Gulen contribuem para tornar o mundo bem melhor. Para alcançarem tal nobre propósito, contem com minha modesta mas entusiástica colaboração!
*Este texto foi apresentado pelo Luiz Henrique Pereira da Fonseca, Embaixador e ex-Cônsul-Geral do Brasil em Istambul (de 2012 a 2015) na conferência ‘Dimensão de um movimento internacional: Fethullah Gulen e o Hizmet’ que foi patrocinada pelo Centro Cultural Brasil-Turquia (CCBT) e realizada na Universidade de São Paulo (USP), 19 de maio de 2016.
http://www.conferenciasobrehizmet.com.br/
Publicado em Voz da Turquia, 26 Agosto 2016