julho 21, 2016

Fethullah Gülen dá entrevista para Folha de São Paulo

Governo turco nos enganou e faz caça às bruxas, diz rival de Erdogan

Fethullah Gülen, o clérigo autoexilado nos EUA acusado pelo governo turco de conspiração, afirma que ele e seu movimento sofrem uma "caça às bruxas", após terem sido enganados pelo presidente Recep Tayyip Erdogan e um governo que hoje "parece com uma ditadura".

Desde 2013, Erdogan acusa o clérigo de 77 anos de tramar contra o seu governo. Agora, diz ter a prova de suas alegações.

Fethullah Gülen, clérigo turco,
em sua casa na Pensilvânia,
nos Estados Unidos
(Foto: Selahattin Sevi
24.set.13/Associated Press)
Poucos dias antes do episódio de sexta, Gülen, que se autoexilou em 2000 nos Estados Unidos, concedeu uma entrevista exclusiva à Folha por e­mail. Nela, comentou sobre seu rompimento com o AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento, de Erdogan), as acusações de que o movimento que criou no final da década de 1960 —o Hizmet— estaria infiltrado na polícia e no Judiciário turcos, as demandas dos curdos por um Estado independente e o extremismo religioso.

O governo americano diz que avaliará a extradição de Gülen desde que a Turquia apresente provas concretas da participação do clérigo no episódio de sexta. No entanto, nenhum pedido formal foi realizado até esta segunda (18), segundo Washington.

No último sábado (17), o clérigo concedeu uma entrevista coletiva aos principais órgãos de imprensa mundiais, na qual disse ser contra qualquer tipo de intervenção militar na Turquia.

"Como uma pessoa que já viveu muitos golpes de Estado [desde a proclamação da República da Turquia, em 1923, já foram quatro], posso recomendar ao povo turco: não seja a favor de qualquer golpe".

Na mesma ocasião, ele sugeriu que Erdogan pode ter forjado o episódio, de modo a reconquistar o apoio popular, hoje em baixa.

Leia, abaixo, a entrevista concedida com exclusividade à Folha:


*

Folha ­- Primeiramente, gostaria de entender sua relação com o Hizmet. Você se considera o líder do movimento?

Fethullah Gülen -­ Em nenhum momento aleguei ser líder do grupo. Sempre considerei uma virtude ser uma pessoa comum.

O Hizmet surgiu com a ideia de fundar instituições educacionais para formar jovens virtuosos, a fim de tentar encontrar soluções para os problemas do país. Uma vez, descrevi o Hizmet como "um movimento formado por pessoas que se reúnem em torno dos valores universais humanos".

Embora me veja como uma pessoa comum, não poderia ignorar a consideração que existe por mim, mesmo que ela aconteça por engano. Tentei usar esse interesse para orientar as pessoas a projetos do bem. Tentei responder a perguntas e solucionar os problemas das pessoas. Se eu tenho um papel nesse movimento, é apenas esse.

O senhor hoje possui uma vida muito reclusa e não costuma sair do local onde mora [na Pensilvânia, EUA]. Com o crescimento do Hizmet, não faria sentido viajar a outros países para palestras? Você teme por sua segurança?

Nos primeiros anos do Hizmet, trabalhei com outros amigos. No entanto, por causa do crescimento do movimento e da minha situação de saúde, ultimamente levo uma vida quase monástica. Aqui fazemos aulas com um grupo de amigos, e, quando minha saúde permite, faço discursos para responder a perguntas, cerca de duas vezes por semana.

O Hizmet é um movimento que reúne pessoas em torno de valores e opiniões comuns. Não acho certo associar o Hizmet a mim e evito realizar atividades que possam causar um entendimento de que sou líder do movimento.

Qual é a presença do Hizmet hoje pelo mundo? Por exemplo, qual o número de seguidores na Turquia e em outros países?

Não existe mecanismo de associação ao Hizmet. Há pessoas em diversos lugares e de diversas posições que compartilham os valores e as opiniões do movimento e, consequentemente, apoiam seus trabalhos.

Não sei o número exato dessas pessoas nem acho que alguém pode saber.

No entanto, amigos que acompanharam a fundação do movimento e suas atividades me dizem o Hizmet já está em mais de 160 países. Dizem também que há milhões de apoiadores e simpatizantes, a maioria na Turquia. No entanto, não é possível precisar números.

Se não existe liderança, é de se imaginar que você e os membros do Hizmet possam ter desentendimentos. Você já se opôs a ações tomadas por pessoas do movimento?

Na direção de uma instituição ou projeto, é muito melhor ter pessoas de inteligência atuando de acordo com a consciência coletiva e respeitando a opinião dos outros do que ter um gênio que atua sozinho. Acredito que, mesmo que haja pequenos enganos nas decisões da consciência coletiva, não haverá grandes erros.

Até agora, não vi nenhum exemplo que vá contra essa convicção.

Porém, nas congregações formadas em torno de opiniões compartilhadas, não se pode esperar que todos pensem igual, isso é contra a natureza. O Hizmet não é um movimento que ignora o livre arbítrio e a liberdade de pensamento dos indivíduos. Se fosse assim, não atrairia tantas pessoas cultas e de boa formação e não seria aceito em todo o mundo.

Posso dizer, citando um termo religioso, que a união na pluralidade é a característica geral do movimento Hizmet.

Seu relacionamento com o presidente Recep Tayyip Erdogan parece ter mudado muito nos últimos anos. Por exemplo, o "The Guardian" já classificou o senhor como um "aliado que virou inimigo"; o mesmo fez o "The New York Times", dizendo que você é "um ex-­aliado do presidente". Recentemente, em artigo publicado no "The New York Times", Sevgi Akarcesme [editor­-chefe do "Today's Zaman", jornal ligado ao Hizmet] disse: "No passado, o 'Zaman' apoiou o governo de Erdogan e do AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento) em suas ações pró­-Ocidente e pró­democracia, bem como nos esforços para introduzir reformas na Turquia que permitissem o ingresso do país na União Europeia". Houve tal aliança com o governo Erdogan? Como ela se quebrou e por quê? A ruptura esteve relacionada à defesa do fechamento das dershanes [escolas preparatórias para o vestibular] do movimento Hizmet por Erdogan, em 2013?

As pessoas do movimento já apoiaram diversos partidos políticos ao longo dos anos — sempre levando em consideração os valores e princípios do Hizmet— seja por meio do voto ou de discursos.

O apoio dado ao governo Erdogan, no passado, também foi baseado na observação desses valores e princípios. Hoje também apoiaríamos qualquer partido que se esforçasse para melhorar a democracia, os direitos fundamentais, as liberdades básicas e para estabelecer uma cultura de democracia.

Nunca houve um apoio partidário cego ou por interesses. Uma prova disso foi a postura firme dos membros do Hizmet aos princípios do movimento, apesar das grandes agressões sofridas após as investigações de 17 e 25 de dezembro de 2013 [um mês após Erdogan defender o fechamento das dershanes, uma investigação policial revelou uma rede de corrupção que atingiu o diretor do Banco Central turco e filhos de ministros de Erdogan, então primeiro­ministro. Aliados do governo turco disseram que o Hizmet estava por trás dessas investigações. Centenas de policiais e de promotores ligados ao caso foram destituídos ou transferidos pelo Executivo].

O jornal "Zaman", do Hizmet,
passou a ser controlado
pelo governo de Erdogan
em março de 2016
(Foto: Getty Images)
Se tivéssemos atendido aos desejos do partido governante e tivéssemos aplaudido tudo que fizeram, talvez não tivéssemos sofrido essa perseguição.

No entanto, as políticas do AKP sofreram um retrocesso total após o referendo de 2010 [que aprovou mudanças na Constituição do país, limitando o poder das Forças Armas e reorganizando o Judiciário]. Eles começaram a praticar ações injustas que eles mesmo tinham declarado extintas, como o fichamento de cidadãos pelo serviço de Inteligência e a pressão sobre a imprensa. Além disso, a promessa de uma Constituição democrática primeiro foi condicionada a um sistema presidencialista, depois foi esquecida totalmente.

Por essas e outras razões, não só as pessoas do Hizmet, como de outros grupos que apoiavam o partido governante, removeram seu endosso.

Ficou claro que o AKP queria apoio incondicional, não importa o que fizesse. Quando mudaram de atitude e demonstraram uma posição totalmente contrária ao que defendiam antes, esperaram nosso aplauso. Mas quem segue valores e princípios não pode apoiar cegamente um partido político, e por isso o Hizmet suspendeu seu apoio. Consequentemente, começou uma caça às bruxas que hoje só aumenta.

Compartilhar nossas expectativas e preocupações sobre o futuro da Turquia é um direito democrático. Da mesma forma, não é crime expressar nossas opiniões aos governantes.

O processo de fechamento das dershanes foi apenas uma das provas do quanto a Turquia está se desviando do caminho da democracia.

Antes da questão das dershanes, houve graves restrições às liberdades civis e aos direitos fundamentais na Turquia. Seguiu-­se uma política de polarização da sociedade e não se deu ouvidos até mesmo às demandas naturais e democráticas da sociedade, como testemunhamos nos acontecimentos do parque Gezi em Istambul [em 2013, manifestantes ocuparam o local em protesto ao governo Erdogan e foram duramente reprimidos, provocando indignação internacional].

Nosso erro foi confiar demais no AKP, pensando que eles estavam cumprindo suas promessas e protegendo os valores tradicionais do país.

Demos ao AKP mais importância do que mereciam e não mantivemos nosso princípio de manter a mesma distância de todos os partidos políticos. Não conseguimos perceber, a tempo, que o governo Erdogan possuía um objetivo secreto.

No final das contas, nós fomos enganados. Não digo que fomos usados e depois jogados fora. Pois, quando os apoiamos, foi com base na perspectiva de valores essenciais e de direitos civis. Esse pode ter sido o nosso erro.

Em mais de uma ocasião, o presidente Erdogan acusou o senhor de orquestrar um "Estado paralelo" e de tramar um "golpe de Estado". O Hizmet sempre disse que não possui ambições políticas e que o objetivo do movimento é promover a fé, a tolerância, a paz e o diálogo inter­religioso e intercultural. Em 2013, muitos disseram que o escândalo político que envolveu Erdogan e as autoridades turcas foi impulsionado por policiais e promotores ligados ao Hizmet. O acadêmico Bayram Balci, por exemplo, disse em um artigo publicado na "Foreign Policy", em dezembro de 2013, que o episódio foi "uma clara e inegável ilustração dessa infiltração [do Hizmet] nas polícia e no Judiciário". Você sabe qual é a presença de seguidores do Hizmet na polícia e no Judiciário da Turquia? Como responde às acusações de Erdogan?

Ter espaço nas instituições publicas do país é um direito constitucional de todo cidadão. Seriam essas pessoas espiões de outros países e por isso infiltrados? O uso da terminologia "infiltrados" demonstra uma mentalidade hostil. Ou seja, tem­se a sensação de que essas instituições pertencem a certo grupo e nenhum outro tem direito a ter espaço nelas.

Os funcionários públicos são subordinados a leis e regras, independentemente de suas opiniões pessoais ou dos grupos aos quais fazem parte. Se, durante as investigações de corrupção, os membros do Judiciário ou da polícia passaram dos limites e aturaram fora dos princípios de direito, então, eles devem ser encaminhados aos tribunais, com provas concretas.

Se não foi assim, se eles cumpriram seus deveres dentro das leis, por que estão tentando culpá­los? Isso eu não consigo entender. Roubar o dinheiro público, receber ou pagar propina não são mais crimes, por isso estão buscando um bode expiatório?

Ficará claro, com o tempo, que as alegações contra o Hizmet são feitas por interesses políticos, e as pessoas que ocupam cargos importantes hoje ficarão muito constrangidas, eu não tenho dúvida disso.

Mas, enquanto isso, o sistema jurídico foi destruído no país, não sobraram nem a Constituição nem os princípios dos tratados internacionais assinados pela Turquia. Foi constituído um sistema parecido com um regime ditatorial, e o país foi muito prejudicado.

Erdogan hoje busca tornar a Turquia um regime presidencial, que poderia formalizar a concentração de poder em suas mãos. Como você avalia esse movimento? Qual seria uma alternativa política para a Turquia?

Numa administração democrática, é essencial que exista na Constituição a proteção dos direitos civis e das liberdades, o principio de separação de Poderes e um governo transparente e supervisionado.

Um governo que reúne todos os Poderes e forças em uma só pessoa não pode ser chamada de democracia.

O AKP prometeu, quando foi fundado, que levaria a Turquia adiante no caminho da democracia nos padrões da União Europeia. Agora, mais do que nunca, ficou clara a necessidade de a Turquia ter uma Constituição democrática.

O mais saudável é a formação de uma Constituição e de órgãos públicos com base nos princípios universais e nos acordos internacionais dos quais a Turquia faz parte.

Diante das ações anticonstitucionais recentes, o Tribunal Superior Constitucional da Turquia não se manifestou. O Judiciário foi usado para fins políticos e nem isso provocou uma reação.

Tudo isso mostra que a questão não é apenas a Constituição e as leis. Todos os membros do Judiciário e da burocracia —que são obrigados a seguir essas leis— e a sociedade em geral, ao lado da imprensa e entidades da sociedade civil, devem defender a democracia e os direitos humanos como uma responsabilidade social.

Com a crise de refugiados e a onda de migrantes da Síria para a Europa, Erdogan agora pressiona a União Europeia para que a Turquia seja aceita no bloco. Você acredita que a Turquia está pronta para fazer parte da UE?

No começo dos anos 2000, a Turquia estava em um caminho muito bom. Infelizmente, muitos dos avanços feitos naqueles anos foram perdidos.

Se for possível retomar aqueles avanços, a Turquia poderia se aprontar novamente para ser membro da União Europeia. Mas, depois de tantas destruições, essa recuperação vai levar anos.

Infelizmente, as instituições do Estado de Direito e da democracia foram muito prejudicadas. Para recuperar essas perdas, deve­se voltar às bases da Constituição.

Todos devem cumprir seus deveres conforme a Constituição. O Estado de Direito deve ser restabelecido. A perseguição e a violência praticadas pelo Estado contra membros de alguns grupos da sociedade devem parar. Deve­se tratar todos os cidadãos igualmente, conceder direitos fundamentais e liberdades civis. Todos os membros da sociedade devem ser abraçados e seus direitos respeitados.

No entanto, tenho dúvidas sobre a sinceridade dos membros do governo turco sobre a Turquia tornar­se membro da União Europeia. As ações do governo indicam que, na realidade, eles não querem essa adesão.

Eles estão caminhando, passo a passo, para um sistema de um homem só, onde não há transparência, prestação de contas, cumprimento de padrões e acordos internacionais. Querem mudar as leis para adequar o sistema jurídico a essa situação de facto já praticada por eles.

Com um regime desse, é impossível a Turquia ser aceita como membro da União Europeia.

Ainda sobre o cenário internacional: Erdogan é um conhecido opositor do regime do ditador sírio Bashar Al­Assad. A Rússia disse no ano passado que o governo de Ancara fez uma aliança tática e secreta com membros da facção terrorista Estado Islâmico (EI) para tirar Assad do poder. Mais do que isso, Moscou disse que Erdogan permite o transporte de armas e envia ajuda através da fronteira para milicianos do EI na Síria. O jornalista Seymour Hersh, ganhador do prêmio Pulitzer, também defende que "Erdogan é um total, completo apoiador do EI". Você concorda com essas alegações? Acredita que o presidente tenha feito um acordo com o EI?

Ficamos tristes com a divulgação dessas alegações na imprensa mundial. Não sei sobre sua veracidade. É triste ver a república da Turquia e seus governantes serem acusados disso.

Sobre a questão da Síria, eu dei alguns humildes conselhos a alguns membros do governo que vieram me visitar aqui, mas eles não me deram ouvidos. Pensaram que não precisavam da opinião de um imã de mesquita. Agora, toda a população turca está pagando a conta pelos erros cometidos no cenário internacional naqueles anos.

Um dos mais importantes grupos de oposição na Turquia hoje é o HDP (Partido Democrático do Povo), uma força pró­curda. Ao mesmo tempo, o presidente Erdogan geralmente culpa o YPG (Unidades de Proteção do Povo, milícia curda que atua na Síria) e o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, considerado uma organização terrorista pelo governo turco, pela União Europeia e pelos EUA) por ataques terroristas na Turquia. Você concorda com a criação de um Estado autônomo curdo?

Os cidadãos curdos na Turquia devem ter seus direitos culturais concedidos, como o ensino na sua própria língua. Uma república da Turquia que os aceita como eles são e lhes dá o direito de serem o que quiserem —poder chegar a todos os postos em todos os órgãos do país— será, também, o país deles.

Isso vale para todos os países. O que importa não é o nome do país, mas como esse país é e qual tratamento ele dá a seus cidadãos.

O mundo cada vez mais globalizado exige uma convivência de tolerância e paz entre as pessoas, incluindo suas diferenças.

Eu tenho fé que o elo histórico entre curdos e turcos é forte e não será quebrado facilmente, embora, no último século, ele tenha sido muito danificado.

Porém, aqueles que aparentam abraçar a causa dos curdos, mas são controlados por terceiros e estão envolvidos com o terrorismo, ficam de fora dessa minha perspectiva. Infelizmente, nos dias de hoje, são praticadas muitas ações que prejudicam os elos entre curdos e turcos. Essa não é a primeira vez.

Tivemos épocas em que falar curdo na rua era crime. Com o tempo, esses problemas foram parcialmente resolvidos, foram dados passos positivos nesse sentido durante o processo de negociação para a adesão da Turquia à União Europeia.

Porém, nos últimos anos, com as operações das forças de segurança, que entram nas cidades para esvaziar os depósitos de armas e munições acumuladas pelo PKK, os civis tornaram­se vítimas e continuam sofrendo.

O tratamento que não tem base constitucional forte e muda conforme o interesse político dos governantes faz com que os curdos pensem em fundar um Estado independente. A maioria dos cidadãos curdos moram nas regiões leste e sudeste do país, mas quase metade habita a região central e oeste do país.

Eu não acho que eles pensariam em um Estado independente se a Constituição garantisse seus direitos culturais e eles tivessem a perspectiva de igualdade na Turquia. Ou seja, se o caminho fosse aberto para eles chegarem a qualquer cargo, sem precisar negar suas raízes étnicas, e se as políticas de Estado fossem imunes aos interesses políticos e tivessem base sólida.

O Hizmet avalia o massacre de armênios em 1915 pelo Império Otomano como um genocídio? Como o governo turco deveria se comportar em relação a essa questão?

Esse assunto tem uma dimensão política da qual eu não quero falar.

No entanto, com relação aos aspectos religioso e humano daqueles acontecimentos, todos cidadãos otomanos —tanto muçulmanos, curdos e turcos quanto armênios cristãos— sofreram violência e foram vítimas.

Ninguém pode ser responsabilizado pelo crime cometido por outra pessoa e sofrer violência não justifica cometer violência. Os armênios que sofreram violência e injustiça eram seres humanos, vizinhos e cidadãos otomanos na época e tinham direitos.

Não cabe a mim orientar o governo turco, mas, olhando o assunto sob o aspecto humano e religioso: primeiro deve­se expressar o sofrimento das vítimas e dos oprimidos; compartilhar dessa dor com empatia; investigar as injustiças cometidas e tentar contrabalançá­las de acordo com as leis atuais do país e com acordos internacionais, pois isso é um dever humano e religioso.

Por outro lado, depois de tanto tempo, ressuscitar sentimentos de inimizade seria um passo que colocaria em perigo a paz e segurança mundial.

Você acredita que o fundamentalismo religioso hoje está se expandindo mais facilmente? Quais são as circunstâncias que permitem que tanto jovens distorçam a mensagem do Alcorão para propósitos terroristas? Qual deveria ser o papel dos líderes religiosos contra esse fenômeno?

Este assunto deve ser examinado levando em consideração seus diversos aspectos: sociológicos, psicológicos, políticos e econômicos.

Sob o aspecto religioso, podemos dizer que uma parte dos jovens busca por algo. Por falta de liberdade religiosa e de boas condições de educação, o ensino religioso se desenvolve nas mãos de pessoas incapazes e em ambientes inadequados.

Em alguns países onde são minoria, muçulmanos sofrem problemas de adaptação por causa de sua religião e às vezes são discriminados.

Por outro lado, alguns muçulmanos usam a terminologia religiosa para seus objetivos pessoais e políticos. Infelizmente, hoje as redes sociais são usadas para prejudicar as mentes dos jovens com ideias radicais. As comunidades muçulmanas possuem muitos problemas sociais, por isso são férteis para o aliciamento de membros por parte de facções terroristas.

Com relação ao uso de fontes religiosas para ideias extremistas, compreender e interpretar o que o Alcorão e os Hadices (frases do Profeta) dizem ou querem dizer exige especialização.

Nesse ponto, um muçulmano comum não pode se contentar com o significado aparente do Alcorão e dos Hadices. Quando e onde este versículo foi revelado? O Profeta Maomé fez algum comentário sobre ele? Como este versículo se aplica à vida? Como os Companheiros do Profeta, as gerações seguintes e os eruditos, o interpretaram?

Deve-­se olhar todos esses pontos com uma visão ampla e íntegra. Quando eu digo especialização, refiro­me a isso.

Mesmo que sua língua nativa seja o árabe, esse trabalho não cabe a um muçulmano comum. Se olharmos as facções extremistas sob esse aspecto, veremos que elas tomam os versículos do Alcorão e os Hadices sem seus princípios, apenas com seus significados aparentes, fazendo a leitura do texto conforme suas próprias ideologias.

É uma pena que, em diferentes períodos da história do islã, vimos interpretações semelhantes. E isso se torna um elemento que apoia a tese dos terroristas.

Esse é um problema que deve ser resolvido e um dever a ser cumprido pelos eruditos da sociedade e pelos clérigos.

Os líderes religiosos, que são pessoas respeitadas, têm a responsabilidade de se pronunciar categoricamente contra a má interpretação das fontes religiosas e serem pioneiros nos projetos educacionais, com todos os recursos disponíveis, para transmitir corretamente a alma da religião.

Hoje, em muitos dos países com população de maioria muçulmana, o ensino religioso está sob o controle do Estado, mas não podemos dizer que esses Estados estão cumprindo seus deveres corretamente.

Recentemente, você disse que suspeitava que o governo turco estivesse por trás de alguns ataques contra escolas administradas por seguidores do Hizmet. Você mantém essa acusação? O Hizmet possui provas?

Erdogan, quando era primeiro­ministro, deu uma ordem clara aos embaixadores turcos. Ele pediu que eles reclamassem do Hizmet às autoridades locais.

No ano passado, a empresa Robert Amsterdam declarou que foi contratada pelo governo turco para perseguir o Hizmet em todo o mundo, mas principalmente nos EUA e em países da África.

Alguns amigos que trabalham nas instituições do movimento me comentaram que houve iniciativas para manchar a imagem do Hizmet e tentar fechar suas instituições educacionais no Canadá, nos EUA e em alguns países da África.

Uma agência ocidental divulgou uma notícia sobre iniciativas de Erdogan contra o Hizmet na África. A imprensa americana divulgou notícias sobre o pedido oficial da empresa Amsterdam para realizar atividades de lobby para o governo turco nos EUA.

Como tudo indica, essa situação é uma realidade.

Por que o Hizmet está interessado no Brasil? Você possui alguma opinião sobre os últimos eventos no país, como o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff?

Os voluntários do Hizmet vão para todas as partes do mundo, tanto para estabelecer pontes de amizade quanto para representar seus valores e aprender com diferentes culturas.

Podemos até dizer que o Hizmet demorou para ir ao Brasil, um país tão grande e importante.

Eu não consigo acompanhar as notícias do mundo todo. Os amigos me contaram que, no Brasil, embora com algumas falhas, a democracia e o sistema jurídico funcionam muito bem. Acredito que os problemas serão superados nos moldes da democracia e do direito.

Há algo que considera importante dizer, mas que eu não tenha lhe perguntado?

O mundo está passando por momentos difíceis.

Os que fazem política criando medo e ódio e os que enganam a si mesmos e apoiam esses políticos causam muitos prejuízos e correm o risco de causar ainda mais perdas.

Em um mundo assim, a construção de pontes entre sociedades é uma tarefa importante.

Eu tenho grande consideração pelos trabalhos das instituições da sociedade civil e dos membros da imprensa, que ajudam na construção de pontes entre culturas e sociedades e ajudam a desenvolver o entendimento e o respeito mútuos.

Agradeço muito por me enviar essas perguntas e me dar a oportunidade de compartilhar minhas opiniões com seus leitores. Por meio dessa entrevista, transmito minhas saudações ao povo brasileiro.

Link do artigo original:
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/07/1792990-governo-turco-nos-enganou-e-faz-caca-as-bruxas-diz-rival-de-erdogan.shtml

Publicado em Centro Cultural Brasil Turquia, 19 Julho 2016
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